Sonho de criança

Farlley Derze
Revista Literária Mente
5 min readDec 26, 2023

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Contar histórias é uma maneira de manter as pessoas unidas. A televisão contou a história do homem pousando na lua. Eu vi na TV, em preto-e-branco. Meu vizinho Nestor deve ter visto. Depois daquilo, todos os meninos da minha idade, naquela época, sonharam em pisar na lua. Mas morar em Realengo, no Rio do Janeiro, não facilitava a realização de um sonho assim. Sonhar em beijar a Carolina, ok, era possível. Saber dançar ou jogar cartas já era meio caminho andado. Mas não quero falar do homem na lua nem da Carolina. Quero falar do Nestor, meu vizinho. Taí um cara que eu gostaria de ter conhecido, tomar um café com ele, ouvir suas histórias.

Nestor tinha um metro e setenta, nem gordo nem magro, e trabalhava como carteiro. Casou-se quando ainda tinha cabelos e não usava óculos. Logo veio a primeira filha, depois a segunda, então precisou mudar de emprego. Viu um anúncio no jornal e conquistou uma vaga de supervisor numa fábrica de refrigerantes. Isso foi em 1989, estava com vinte e nove anos, a esposa na mesma idade, uma filha com quatro e outra com dez meses. Sua vida como supervisor não interessa tanto, basta dizer que foi muito bem sucedido, era disciplinado, organizado e muito educado. Portanto, nada podia dar errado em sua ascensão profissional. Assumiu o cargo de diretor numa das filiais ao completar quinze anos de empresa. Com tais virtudes, dá para concluir que sua vida familiar correu às mil maravilhas para a esposa e as filhas, mas nem tanto para ele próprio. Sempre abria mão de tudo para satisfazê-las. Convenhamos: isso é triste. Numa família todos merecem realizar seus sonhos ou suas vontades desde que se faça por merecer. E Nestor merecia qualquer coisa que desejasse. Entretanto, com a mesma sutileza com que realizava os sonhos da mulher e das filhas, mentia para si mesmo. Inventava no silêncio de sua cabeça que seus sonhos não tinham importância. Eu era seu vizinho e, como vivo preso no meu umbigo, nunca lhe disse “bom dia, Nestor”. Aliás, eu só soube que se chamava Nestor porque li na coroa de flores ao lado de seu caixão. O que contei até agora escutei da boca dos outros aqui no velório.

Dois dias atrás, às duas da madrugada, acordei com gritos vindo da casa dele. Você pode imaginar três mulheres aos gritos de desespero no meio da madrugada. Abri uma fresta da janela que dava para a casa do vizinho e vi luzes acesas. Eu imaginei o pior, e estava certo. Porém, usei do meu egoísmo, balbuciei que não tinha nada a ver com aquilo, nada a ver com eles, fechei a janela, ajeitei o travesseiro e puxei o cobertor. Eu de fato estava com muito sono e de fato sou egoísta. Dane-se o mundo. As coisas são como são. Eu estava pegando no sono quando tocaram a minha campainha. Era a filha mais velha do vizinho. Já me esqueci do nome dela. É aquela na cabeceira do caixão, com óculos escuros, vestido preto e cabelo loiro em rabo de cavalo. A filha caçula saiu faz meia hora. Só sei disso porque coincidiu de vê-la sair quando eu consultava as horas no meu relógio. Certamente voltaria, “só saiu pra tomar um ar”, pensei.

Naquela noite, abri a porta e a mais velha me pediu ajuda. Fui até lá e vi o vizinho caído no chão da cozinha. Aproveitei para dar uma olhada na casa, pareciam viver muito bem. Os óculos dele estavam ao pé da geladeira, as mãos pousadas no piso em forma de concha, caiu de barriga pra baixo, tinha uma calça de pijama comprida azul com listras brancas, uma camiseta da hering, os pés descalços e estava ali, morto, estirado. Exalava um aroma daqueles sabonetes de cor marrom, não me lembro o nome agora. Na minha idade as palavras vão e vêm.

Depois de auxiliar a viúva com telefonemas para empresas funerárias, prometi-lhe, num ato irracional, ficar ao lado da família para tudo que precisassem naquele momento. Vamos concordar numa coisa: é difícil para uma mulher com mais de cinquenta anos, que se desloca numa cadeira de rodas, lidar com o marido morto no chão da cozinha, sobretudo com as filhas aos prantos, aos gritos, histéricas.

As pessoas circulam ao redor do caixão. Eu me pergunto “e se fosse comigo”? Já estou mais pra lá do que pra cá, e solteiro. Quando eu morrer, quem dará o alarme?

Levanto-me e vou até o morto. Ouço os cochichos: “morreu sem ver o time dele campeão”, “nunca destratou ninguém ”, “morreu cedo”, “morreu de quê”?

Há flores e faixas dos colegas de trabalho: “Nestor, o melhor chefe do mundo”.

De repente, a filha mais moça retorna ao recinto e traz ao lado um cachorro preso à coleira. A filha mais velha lançou-se em sua direção, deu-lhe um abraço comovente, depois se abaixou e acariciou o cãozinho que tinha um porte médio. Parecia o filhote de alguma raça, desses que ficam grande. Tinha o pelo marrom e os olhos cor de caramelo. A filha mais velha, ainda agachada, sussurrava sorridente para o cachorrinho. A irmã caçula tinha um sorriso de satisfação. A viúva manobrou sua cadeira de rodas até o animal. A filha mais velha levantou-se e as três mulheres se abraçaram como se se tratasse de uma comemoração. A caçula passou a coleira às mãos de sua mãe. A viúva enrolou-a ao redor da mão, fez um giro de meia-volta e se aproximou do caixão. Pediu licença e falou: “quero agradecer a todos por estarem aqui. Meu marido foi um homem feliz…”, fez uma pausa brusca, apertou os lábios e prendeu o choro. Desviou os olhos para o filhote preso à coleira. Tragou o ar num ruído audível por todos e continuou: “mas foi feliz à nossa maneira e não à maneira dele. Quando nos conhecemos conversamos sobre alegrias e tristezas. Ele me contou que na adolescência teve uma tristeza grande, aquela que machuca a alma e permanece na memória pro resto da vida. Um dia chegou da escola e não ouviu o latido de seu cachorro. Seu pai decidiu dá-lo a alguém que morava noutro bairro. Disse pra mim que foi a tristeza mais longa em sua vida e que um dia voltaria a ter um cachorro em casa. Nós nos casamos. Embora ele realizasse meus sonhos e os de nossas filhas, eu nunca permiti que ele tivesse seu cachorro. Minhas filhas também diziam não”. Fez outra pausa, apertou os lábios e duas lágrimas desceram solitárias. Tomou outro gole de ar e continuou. “A vida passa rápido, as coisas são como são. Ele merecia realizar seu sonho de criança. Quando o Nestor via um cachorro no quintal das pessoas seu olhar se transformava num olhar de menino”.

Ela parou de falar com um sorriso sem graça no rosto, que subitamente desapareceu para dar espaço a um rosto duro, pensativo como quem recalcula o tempo. A viúva fez um gesto, a caçula pegou a coleira com a mãe e enrolou-a na mão gelada do pai.

Este conto e outros estão disponíveis no livro PLÁGIOS DO VAZIO.

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Farlley Derze
Revista Literária Mente

Farlley Derze (Acre, 1963) is the Brazilian author of the book “Caligrafias de afetos” and “Plágios do vazio” published by Microeditora Press.