às maneiras de se dizer alguma coisa

Victor Sampaio
Revista Mormaço
Published in
4 min readDec 10, 2021

ato I

algumas palavras são mais difíceis de escrever do que outras. ao menos para mim sempre foi assim. me dei conta deste fato pela primeira vez ainda bastante novo, no colégio, ao tentar escrever a palavra “oblíqua”.

a sensação que tenho é de que era como se a minha mão precisasse pensar um pouco antes de desenhar a palavra no papel. aprendi, não tão cedo, que com palavra funciona assim: uma vez posta, pode não haver volta. eu me lembro de estar escrevendo em fluxo, tentando acompanhar de perto a professora que ditava um texto e, de repente, ser tomado de assalto por esse movimento quase involuntário de desgrudar a ponta da grafite da folha de papel e mantê-la suspensa no ar, por alguns poucos segundos, quase como se a minha mão se preparasse para a queda, quase como se precisasse respirar fundo e pegar um impulso, antes de se lançar de volta e poder escrever

o-blí-qua.

desde então, esse curioso fato me acompanharia durante a vida e se abrangeria a novas possibilidades. não tardei a descobrir, por exemplo, que o mesmo acontecia — com menos frequência, é verdade — com a letra “Q” e o número “4”. com o passar dos anos, as palavras “consequência” e “inquietude” passaram a exercer a mesma carga sobre a minha mão direita.

(pausa)

bom, é verdade que eu acho isso tudo bastante curioso e tudo mais, e talvez até pudesse me debruçar em linhas sobre o assunto numa outra hora, mas toda essa reflexão feita agora, meu bem, de última hora, tudo isso, é só uma maneira que encontrei de te dizer que desde criança algumas palavras me parecem mais difíceis de escrever. e hoje, ao tentar falar de você num poema, me peguei lembrando disso e pensando que talvez isso não se limite às palavras

alguns poemas são mais difíceis de escrever

é preciso preparar a mão para a queda

estar disposto a cair
ou desistir

escrever poesia com o teu nome é quase como tentar escrever “oblíqua”. em cada palavra sinto que me lanço em queda livre ao precipício. somente um peito que bate forte de adrenalina pode ser capaz de arfar palavras que façam jus. é preciso estar disposto a cair. se dói? às vezes. mas escrever poesia tem esse efeito na gente: faz a gente se sentir imortal. e eu venho tentando entender que eu preciso arriscar um pouco mais. estar mais disposto. “a gente precisa se movimentar”, você me disse um dia. bom, é verdade. confesso que ainda não consigo fazer yoga, mas escrever talvez seja uma forma de se movimentar.

não é?

não sei.

mas finjo que sei.
finjo que sou o dono das minhas palavras, que conheço os atalhos desses abismos e me lanço mais uma vez.

porque sempre há dias como esse, em que é impossível resistir à queda.

ato II

e então — precisei voltar ao papel para dizer isso —, como se o baque de uma queda livre não fosse o suficiente, como se escrever um poema já não exigisse o bastante, ainda é preciso ter peito para aguentar a provocação barata dos algoritmos. pois não é que depois daquele tempo de absorção, de balançar o olhar para fora e para dentro da janela, eu respiro, jogo um gole de água direto para a garganta seca, levanto da cadeira e me viro para o lado. vejo o celular e o pego. desbloqueio-o com a ponta dos dedos — que ainda formigam um tanto de você — , e num hábito rotineiro, abro o instagram. e…

lá está você.

não preciso nem ir longe. basta olhar para a primeira postagem que me aparece e

lá está você.

numa praia. alguma praia da tua cidade, imagino. você e o sol. seu cabelo está enorme e com isso me dou conta de que realmente já faz bastante tempo desde a última vez que nos vimos.
quanto? dois anos?
tento pensar. conto os meses no calendário. me lembro daquele fim de inverno, da chuva fria, do pelourinho quase vazio e do abraço apertado. quase dois anos, é o que eu digo.
não foi o suficiente para esquecer os teus sonhos.

olho para o papel, para o celular, para a janela. volto ao celular e deixo um like, como de costume.
das pequenas maneiras modernas de se dizer

o dia é bonito
a praia é bonita
e o sol

o sol é você.

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Victor Sampaio
Revista Mormaço

poeta y ator, pelo caminho | transformando inquietações em palavras inquietas