É mais tarde do que supões

Letícia Zampiêr
Revista Mormaço
Published in
2 min readAug 1, 2023
Fonte: AI Art Generator

É tarde demais e você sabe disso. Você sabe desde o minuto em que optou por recusar minha presença. É tarde demais desde antes do começo, pois o tempo e o destino, companheiros inseparáveis, nunca estiveram ao nosso lado. Ou talvez só seja mais fácil acreditar em forças externas do que na nossa fragilidade. E como éramos frágeis. Você sabe a minha raiva, e não sei o que se passa na sua cabeça. Repito nossa história com outras, como já repetira antes e como vou continuar repetindo. Me bancar custa e você sabe disso mais do que ninguém. Eu te entendi na mesma proporção que você me entendeu. Pouco, muito pouco. Em cada sumiço tentava entender o que você queria de mim. Mas não há respostas que digam de você. Tudo o que sei é que você sempre quis demais e não tinha o suficiente para te dar.

Sei que os quadros que te dei ficaram meses guardados. Talvez por raiva, talvez por desgosto. Talvez te lembrassem de mim e sei que você quer me esquecer desde antes de existirmos. Pergunto-me se eles amarelaram, se se colaram a restos de jornal velho no fundo da gaveta, ou se você os colocou em uma parede escondida, que não mostra para ninguém. Um segredo seu, só seu. E meu. Fomos segredos um para o outro. Te guardei como uma história bem contada, pois tinha medo de te perder. Tive muito medo de te perder. E, de tanto medo, perdi.

Repetimos. Repetimos infinitamente repetições herdadas. Aprendemos a nos firmar cegamente em lugares fixos e lutamos bravamente para não sair de lá. Você sabe a minha herança, a marca de não ter um nome, de ter sido roubado. Não pertenço a ninguém que me ame. Acho que te amei. Mas não mais do que a ela. Não peço perdão, pois isso não é algo pelo qual se peça desculpas. Juro que tentei. Juro que fiz o possível. Mas o possível foi pouco e somos frágeis. As mãos invisíveis que me guiam para o lugar de não ser amado e me tiram de ti, são mais fortes.

Aquele dia foi nossa despedida. Nos vimos muitas vezes depois, mas ali foi o fim. Com o sol de fim de tarde entrando por sua janela, aquecendo o meu pedido. Os quadros entregues como que dizendo “É isso que posso lhe dar”. É só isso. E te dei.

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Letícia Zampiêr
Revista Mormaço

Psicanalista, pesquisadora e poeta. Autora de Para provar que (não) te inventei (Editora Patuá, 2024).