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Masso Otembra
Revista Mormaço
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2 min readApr 4, 2022
fundo cinza, no topo um peixe, no centro da imagem uma pessoa, representando uma mulher, está com os olhos direcionados à pessoa que observa a obra, em seu ombro esquerdo há uma cobra. a pessoa tem escamas de peixe nos ombros e nas pernas, e nas suas mãos leva um recipiente dentro do qual está um peixe.
Belkis Ayón. Sikán (1991)

Nem que eu não tivesse estrela em minha língua, nem que eu não tivesse. Nem que eu não visse mais o fantasma da sua mão de fazer estrago toda vez quando eu fechasse o olho, nem que eu não visse. Estrelas, assim, que eu digo, é aquelas que caíram do céu da minha boca a primeira vez quando tu me bateu. Tu sabe o que é uma estrela caindo, Simplício? Sabe não? É um meteoro. Sabe que faz um meteoro quando cai no mundo? Buraco. E é pra sempre. Coisa que não dá descanso. Verdade é isso, viu? Piores horas do dia são quando eu deito a cabeça no travesseiro e penso que a culpada fui eu de morar mais tu. Mas se na época não tinha jeito. Há pois: quando a gente sai do lugar onde a gente nasceu, onde tem nosso umbigo enterrado e tudo, jurando que não volta mais, é porque não volta. É porque se voltar é humilhada, é que nem alguém ver Moisés abrindo o rio, atravessar o rio, e depois reatravessar o rio depois de fechado, porém nadando, modo de voltar aonde tinha saído. Eu não voltava. Então eu fazendo já três meses aqui desde quando eu tinha saído de lá, trazendo nada. Quer dizer, nada além da fama de puta. E um menino que nem largava o peito. Eu aqui sofrendo sem ter o de pagar o aluguel, aí cê me aparece. Pagou meu aluguel. E foi ficando. Eu, é. Eu acho que foi essa a desgraça. Culpada não foi eu de me deixar levar sem saber que não era amor. Ou foi? Foi não. Culpado foi tu, sua desgraça, de me comprar sabendo. E levou três anos nessa. Vergonha não tem. E agora eu tenho estrela na ponta da língua, Simplício, e o universo inteirinho em minha boca. É disso que tu tem medo, não é? Do universo em minha boca. Pois tenha. Cada coisa até a mais miúda vai amaldiçoar seu nome, desconjurar todo passo seu. E eu vou caminhar sem pena, voar sem pena, nadar sem pena, porque a mesma costela minha que tu quebrou foi a que eu juntei de novo pra virar outra. E não volto. Nem que eu ainda te amasse, Simplício, nem que eu tivesse te amado um dia. Nem que eu tivesse. Aproveite esse áudio aqui porque é o último e depois disso eu te bloqueio. Seu podre.

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