A mulher de tamanco

Jacqueline Gama
Revista Mormaço
Published in
4 min readSep 19, 2020
Ilustração digital Laura Cardoso

Era noite. O tamanco da moça clicava no chão. Eu a observava da minha janela indiscreta. Ela saia da loja onde trabalhava, ainda com a farda. Na época, eu morava em uma sobreloja. De dia a rua ganhava vida: “relógio de dez real”, “tênis naique por cem conto.” Várias lojas que eram o espaço físico do aliexpress.

Eu me sentia viva quando o menino da água mineral gritava, ou quando eu descia para beber água de coco no carrinho. De quebra, eu podia andar para qualquer lugar que encontrava uma lanchonete, uma esquina colorida e muita, muita gente.

Eu tinha acabado de fazer 32 anos na época, era a idade que eu achei que teria filhos, me casaria e estaria bem empregada. Desses três, só consegui realizar o sonho do bom emprego. Eu não precisaria estar morando em uma sobreloja já que meu dinheiro permitia que eu morasse em um bairro mais nobre. Mas os sons, os cheiros e as sensação me moviam junto com aquelas esquinas de camelôs.

Pagava o aluguel em um prédio antigo e colocava o carro em um edifício garagem, há muitos anos que meu pai havia adquirido aquela vaga. Eu nunca me preocupei muito com a segurança. Alguns prédios daquela rua já tinham sido arrombados, mas não o meu. Talvez porque fosse na frente de uma igreja, ou talvez eu só tivesse dado sorte de ainda não ter acontecido, como se eu soubesse que em alguma hora iria me ocorrer, apenas esperava que no tal dia eu não estivesse em casa. Te antecipo, eu me mudei e a antiga vizinha de porta me contou que duas semanas depois meu apartamento tinha sido invadido, estava vazio, a janela se encontrava estilhaçada.

Aquela moça fazia o mesmo caminho todos os dias, da loja para o ponto de ônibus. Era uma linha reta. Pela manhã eu nunca a tinha visto chegar. Talvez ela fosse um fantasma, ou eu dorminhoca demais para perceber a abertura da loja. Às vezes estava preparando aula, então eu esquecia da mulher de fogo e seus sapatos.

Mas naquela noite algo de estranho aconteceu. Eu não ouvi o som do tamanco. E nem avistei a moça. Nem um raio de cabelo que se casava com o pôr do sol. Ela era a transição do meu dia. Eu me senti vazia. A moça não estava lá. O que eu faria nos começos das noites? Apenas ouviria o sino da igreja? Eu pensei em descer as escadas e olhar a rua, mas estava deserto demais, até para quem não tem medo.

Na manhã seguinte, eu não suportei o estranhamento. Desci, caminhei até a loja da qual ela sempre saia. A rua estava normal, mas não para mim. A rua não fazia sentido sem ela. A minha musa. Ela me inspirava de uma forma tão subjetiva que nem eu mesma entendia o porquê. Não sei se era o som do tamanco, o cabelo ou o caminho. Não sei se era o meu desejo de observá-la. Eu não aceitava perdê-la assim. Sem nenhum aceno ou palavra de boa noite. Eu não aceitava que os dias passariam e eu não mais a veria. Eu nunca aceitei perder, mas como eu posso perder algo que só me pertenceu ao olhar?

Me esbarrei no camelô do relógio. O tempo ficou confuso por alguns instantes. Pedi desculpas rapidamente enquanto suava como quem corria. Eu estava com meu velho All- Star e com um frio imenso na barriga. Adentrei a loja, era uma dessas que vende produtos para esporte, cadeira de rodas, tensores, meias calças. Inventei que precisava de uma cinta, talvez para tapar o buraco que se fazia em mim.

— Senhora, temos P, M, G, GG. É para você mesma?

Ela me perguntou com os olhos cor de noite. Eu demorei um pouco para responder. Olhei para o caixa e não tinha mais ninguém. Só nós duas. Eu queria perguntá-la sobre a moça do tamanco, por que ela não estava ali? Mas como perguntar isso sem ter nenhuma intimidade? Sem nunca ter ouvido falar dela? Também não queria voltar outro dia e passar os fins de tarde como esperando um alguém que nunca vem.

— Senhora?

— Desculpe, é G. Vou dar de presente pra minha mãe, ela sempre vem aqui, normalmente é atendida por uma mulher de cabelo vermelho, muito sorridente. Ela disse que a moça sempre está de tamanco e que não tem como deixar de notar porque o som preenche todo o espaço.

— Como é a sua mãe?

— Ela é baixinha, sempre está com uns óculos enormes no rosto e normalmente vestida de roupas coloridas, a voz fininha. Ela parece uma coruja.

— Eu acho que me lembraria dela, mas muita gente passa por aqui todos os dias.

Nesse momento eu estava boquiaberta, não sei se transmiti o meu espanto na face, talvez sim, pois sou uma mulher muito expressiva. Minha boca ficou seca, e, as palavras grudadas no meu palato mole. O cabelo dela estava escuro e eu não ouvia som de tamancos, o que acontecera do dia para noite?

— É você? A moça que atende a minha mãe?

Ela sorriu. Não conseguiu conter o brilho de criança. Eu estava suando mais ainda nesse momento.

— Pintei o cabelo.

Olhei para o chão, ela estava usando sapatilhas.

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Jacqueline Gama
Revista Mormaço

Graduanda em Letras, colaboradora da revista Mormaço, colunista do Soteroprosa.com e autora do podcast ARTE EXPRESSA.