a mulherzinha dentro da mulher

amélia
Revista Mormaço
Published in
3 min readDec 1, 2022
Anya Osintsova

disseram que era culpa dela porque foi lá que tudo começou. a mãe da menina ensinou ou não ensinou? ensinou sim, foi uma excelente inspetora do sanitário direito, o que continha um laço na parte de cima da cabeça. comprou para ela um rodinho na feira, com apenas três anos e já sabia puxar as águas alheias para dentro do buraco.

ensinou com prazer a cuidar dos cachinhos, a beijar os dodóizinhos das bonecas brancas e loiras de olhos clarinhos. ensinou aos bichinhos de pelúcia, com astúcia e leveza que dê com o é do e cê com e é ce. aplaudiu os mais espertos e chupou um pirulito. rosa, é claro. porque azul é do bruninho, do paulinho, é do serginho — que usam gravatinha e não tem o lóbulo furado.

aprendeu.
hidratou e eliminou as cutículas. se apavorou com as axilas vivas. arrancou, um a um, os fios desordenados que protegem o olhar. acidificou as erupções cutâneas e se derramou em lágrimas a cada toque suave do protetor em sua pálpebra. aprendeu, aprendeu sim. passou a vida aprendendo a melhorar o doce de abóbora com coco ralado — não esquecer dos cravinhos. os segredos de um azulejo esterilizado é uma pastinha de bicarbonato de sódio. e a remoção de manchinhas dos travesseiros com água oxigenada, ela aprendeu com a vizinha. aprendeu também a dar o sorrisinho suave enquanto escuta as reclamações de um dia difícil de trabalho, se abrindo junto a uma latinha de cerveja.

aprendeu, sim. a dizer sim.
a ser limpinha, sequinha do lado de fora e molhada do lado de dentro. a ser penteada, arrumadinha, a ser doce, sem sangue, sem pelo, sem mancha, sem laço. aprendeu que é furada, mas que pecado! os buracos fedem, precisam ser tapados. fechar os olhos, os ouvidos, a boca, as pernas. mas abri-los para um outro, no singular e somente, silenciosamente entre quatro paredes caladas. pois o deus-homem está lá, sempre à espreita, de vigília. ninguém mandou comer a maçã, olha como está gordinha!

aprendeu muito bem, não se preocupe. pois mesmo quando pensar em se abrir ao próprio mundo — a mãe, a irmã, a prima, a sogra, a amiga, a nora, a vizinha, a madrinha, a santinha estará lá junto à vozinha questionando e duvidando: se é amada, se é ouvida, se está errada, se é o suficiente ou se é demais ou se está faltando ou se não dá mais. e se a culpa for minha e se eu não for o bastante. e se eu for trocada e se houver um amante.

ela aprendeu com os gregos, os brancos e os santos. e agora luta para se descolar dos morfemas diminutivos enquanto a mulherzinha se afoga na fogueira das palavras.
ou não, já que ela não existe.

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