A ODE

Matheus Peleteiro
Revista Mormaço
Published in
5 min readAug 17, 2021
FOTO: MEMÓRIAS DA DITADURA, Carta Capital.

“Todo homem não é nada além de um pedaço de carne! — ao menos até que a gente o conheça bem e decida manter distância dele”, gritou a líder do motim, com espirituosidade, enquanto uma horda de mulheres inabaláveis fazia silêncio para escutá-la e impedir que aquela se tornasse apenas mais uma manifestação boba, ofuscada por estúpidos gritos sem direção proferidos por militantes desnorteadas.

Cartazes com dizeres como “Pelo direito de objetificar”, “Por uma objetificação respeitosa” e “Em defesa da objetificação consensual” infestavam a praça onde estava Luana, que, de imediato, indignou-se com a postura assumida, julgando que havia ido até o protesto feminista à espera de uma rebelião em contraposição à cultura da objetificação, e se deparara com uma verdadeira ode.

Encolerizada e emudecida pelas circunstâncias, Luana retornou para casa com o sangue quente. Assustou-se ao notar uma polarização equilibrada e, quando viu a extensa e divergente repercussão provocada por conta da manifestação e dos debates suscitados nas redes sociais, convenceu-se de que o mundo estava de pernas pro ar e pediu uma pizza, ao mesmo tempo em que, na TV, o silêncio sobre o tema imperava.

Contudo, se entre as mulheres havia uma desavença equilibrada, entre os homens a discussão era voto vencido. Num primeiro instante, olharam a situação com receio de que fosse uma armadilha elaborada para condená-los assim que se manifestassem a favor. Todavia, depois de perceberem a seriedade da fala das manifestantes, favoreceram-nas avidamente.

Aqueles que amavam mais a si próprios do que as parceiras se sentiram insultados. Eram narcisistas e exigiam que os admirassem por inteiro. Os religiosos mais fervorosos, por outro lado, optaram por condená-las como impudicas. Já aqueles que se diziam liberais, apesar de nutrirem ideais conservadores a respeito dos costumes, expuseram-se quando não foram capazes de camuflar o desconforto que sentiam com a possibilidade de passarem a ser comumente vistos pelo sexo oposto como meros instrumentos, permitindo que a hipocrisia dos seus discursos em desencontro aos seus atos fosse exposta, consagrando-os como motivo de piada.

Luana sentia-se verdadeiramente traída ao ver as suas irmãs de luta concordando com algo que possibilitava a sua redução à aparência. Sofrera este dilema durante a vida inteira e, para ser justa, até se condicionara a se esforçar para não deduzir algo sobre um indivíduo a partir da primeira impressão que tinha, considerando que não se pode saber quase nada a respeito de uma pessoa com base numa mera análise superficial, e com a convicção de que, para respeitar alguém, era preciso não imaginá-lo como um mero objeto de desejo.

Ocorre que, quando reparou Roberto numa confraternização da firma onde trabalhava, Luana teve as suas convicções e crenças balançadas. Apesar de mais tarde ter descoberto que ele trabalhava num setor próximo ao seu, nunca o havia notado. Talvez por alguma incompatibilidade de horários, nunca pegara o elevador em sua companhia. Nunca escutara as suas ideias ou o seu tom de voz ao dizer bom dia, nem o percebera caminhando pelo prédio. Não conhecia os seus valores, o seu sobrenome ou a sua trajetória, mas se sentia tremendamente excitada pela sua postura. Pelo seu peitoral magro e bem definido, pelo seu aroma de surfista engravatado. Pela sua pele praiana e seus braços depilados, nem muito finos e nem muito musculosos, que não saíram da sua cabeça desde a reunião.

Em relação à mente que controlava aquele corpo, não cultivava um pingo de apreço. Porém, de algum modo, sem precisar dizer uma única palavra, Roberto provocava um ardente desejo em seu íntimo, fazendo com que a sua vagina se lubrificasse a ponto de encharcar a calcinha quando lhe permitia habitar os seus pensamentos. Ainda assim, aquilo lhe causava constrangimento. Não achava aceitável ceder ao primitivismo animal.

Noutras situações, repreenderia tais impulsos. No entanto, confusa graças ao que vivenciara nos últimos dias, Luana pegou o celular e começou a ler a respeito.

“Isso não é justo!!”, comentou numa matéria a favor do protesto.

“Se o mundo fosse justo, todas as mulheres seriam lésbicas”, respondeu um perfil fake.

“Você está cometendo o erro mais comum de todos: o de confundir objetificação com desrespeito. Por séculos fomos preparadas para satisfazer aos desejos carnais dos nossos parceiros, e, agora que enfim pleiteamos a nossa voz, devemos saber separar o desrespeito dos homens vis, da possibilidade de, assim como eles, enxergamos alguns indivíduos como meros instrumentos de prazer. Pense bem, sis: que mal faremos a um objeto se o tratarmos bem? Além do mais, depois do primeiro contato, dificilmente não desenvolvemos algum sentimento em relação à pessoa do outro lado da relação. A objetificação é natural. É o primeiro passo”, replicou uma outra mulher, exercitando a sua sororidade.

Luana permaneceu reflexiva durante horas até que, decidida a dar um fim à sua submissão aos próprios prejulgamentos, pediu o número de Roberto para uma amiga do RH e ligou para ele, que, admirado, atendeu-a com entusiasmo. Perguntou se ele estava só, ofereceu-se para ir até a sua casa após a confirmação e, depois de algumas taças de vinho, enquanto tocava uma playlist que ele fizera especialmente para ocasiões daquele tipo, ela montou em sua cintura como uma felina selvagem e só dormiu depois de ter os seus desejos carnais satisfeitos.

Aliviada e mais leve, no dia seguinte percebeu que aquilo que detestava e lhe fazia se sentir ofendida não era a objetificação lasciva dos primeiros olhares, nem tampouco o olhar desejoso que lhe dispensavam nas ruas, mas o desrespeito dos homens. A desonestidade. A objetificação posterior. A falta de gentileza após o vínculo. Os maus modos. A grosseria. A ideia preconcebida de que todas as mulheres, quando transam, acordam no dia seguinte esperando que aquilo se converta num relacionamento sério.

Após um novo contato de Roberto alguns dias depois, Luana o informou, através de uma mensagem no WhatsApp, de maneira educada e sincera, que não gostaria de levar a relação adiante. Argumentou que preferia que o caso terminasse por ali ou que fosse mantida a casualidade.

Surpreendido, Roberto elogiou a forma honesta com a qual ela abria o jogo e retribuiu o gesto:

“Fico mais tranquilo. Eu também prefiro não levar isso muito longe. Por essa razão demorei uns dias até entrar em contato novamente: não queria parecer em busca de um relacionamento. Mas… sempre que quiser repetir aquele dia, por favor, fique à vontade pra me ligar”.

Apesar de odiar homens que transam supondo que toda mulher vai para a cama na expectativa do início de um relacionamento, atravessando a rua, Luana se sentiu livre ao olhar para um homem e não sentir que precisava conhecê-lo melhor para alimentar alguma espécie de interesse pelo seu sexo. Sem culpa, sem autocensura e sem achar que o estava desrespeitando, encarou-o com assanhamento e percebeu-o vindo em sua direção.

--

--