A pequena grande casa

Céu Passos
Revista Mormaço
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4 min readDec 1, 2022
Acervo da autora.

Tocou a campainha e uma senhora de pouco mais de sessenta anos se aproximou com um largo sorriso e abriu o portão dando espaço para que ela entrasse.

O pátio já não lhe parecia tão grande como antes. Lembrou-se de quando, muito menina, sentava no batente frio de cimento queimado para ouvir os vizinhos do lado. Eram músicos e quase todas as sextas-feiras reuniam-se com outros amigos para um sarau de chorinhos. A música invadia e tomava sua alma. Leilah viajava com aquelas melodias que até hoje lhe acompanham.

Na sala não reconheceu o ambiente. Fechou os olhos e as lembranças lhe transportaram para um outro tempo. Ouviu o vozerio e a movimentação de pessoas que agora moravam só nas suas lembranças. Era dia de festa e a primeira providência era uma grande faxina. Móveis eram retirados e o piso de madeira, uma bela composição em marrom e amarelo, era lavado e encerado. O ambiente ganhava ares de frescor e claridade. Os móveis eram colocados de volta e os bibelôs e porta-retratos, eram arrumados nas estantes junto com os paninhos de crochê.

Passando pelo corredor, viu o quarto onde dormia. Recordou de seu guarda-roupa e seus tesouros guardados em caixas de sapato. Suas brincadeiras de menina se resumiam a confeccionar e colecionar bonecas de papel. Passava horas criando vestidos, saias, botas, bolsas e até perucas para elas. Se distraia recortando e organizando as pequenas peças nas caixas. Já não lembrava mais o fim que levara suas preciosidades.

Mesmo vazia e sem móveis ao se aproximar da cozinha, sentiu o cheiro de grãos de cominho sendo aquecidos na tampa da panela do feijão. Acelerou os passos e por um instante acreditou que encontraria sua tia preparando o almoço.

Tia Zizi, moça velha, como nomeavam as moças que não se casavam e eram acolhidas por parentes próximos para ajudarem nos serviços da casa, cuidava dela e de seus irmãos. Só assim a mãe podia trabalhar fora para, também, sustentar a família. Eram tempos difíceis.

Tia Zizi tinha a pele alva e enrugada, gostava de usar vestidos de flores miúdas. Os cabelos longos e grisalhos sempre presos num coque, um pitó, como ela dizia.

Ao chegar à cozinha, o cheiro do feijão com charque e jerimum sendo cozidos em uma grande panela no fogão lhe veio à lembrança. O barulho borbulhante estalou em seus ouvidos. O aroma do cominho se intensificou e pode ver, como uma visagem, tia Zizi socando as sementes dele no pilão. O arroz branquinho perfumado com alho e os bifes empanados encheram sua boca d’água. Desejou sentir aquele sabor de comida caseira mais uma vez.

Olhou pela janela da cozinha que dava para o quintal e sorriu quando se viu correndo com suas irmãs. O jambeiro, carregado de frutas maduras, o chão coalhado com suas flores de um rosa intenso, quase vermelho, agora era apenas um tronco velho abandonado. Abriu a porta e foi até lá.

– E o poço d’água? O que aconteceu com o poço? — murmurou.

A velha senhora de cabelos prateados respondeu que não sabia de poço algum.

– Um perigo! — suspirou olhando no quintal, agora todo cimentado.

Não restou um pedacinho de terra e muito menos as plantas tão queridas da tia Zizi: o jasmim de Santo Antônio para banho cheiroso, o mucuracaá, erva poderosa usada para curar dor de cabeça, o limão galego, a acácia que perfumava o quintal e um pé de pitanga, conhecido aqui como ginja, sua fruta preferida. No quintal havia também uma palmeira de pupunha e uma de açaí. Este último, para tristeza da família, nunca deu frutos.

Mas o velho poço continuava ali embaixo, ela ainda podia ouvir o eco quando gritava seu nome e o poço lhe respondia. Era o poço, na sua imaginação de menina, um lugar proibido, perigoso, sem fundo. A possibilidade de algum desavisado cair dentro dele, caso o cimento cedesse, causou-lhe aflição.

Com olhar de despedida dirigiu-se à saída sem olhar para trás. A velha senhora a seguiu ligeira e perguntou:

– A senhora gostou? Vai alugar ou comprar? Estamos com planos ótimos para ela.

Sabendo que o tempo passa para todos, inclusive para a pequena grande casa da sua infância, respondeu com a voz embargada:

– Obrigada, não é mais a casa que procuro.

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Céu Passos
Revista Mormaço

Sou nortista de Belém do Pará e encontrei na literatura a possibilidade de contar minhas histórias e das personagens que me cercam.