A Vela

Leonardo Passovi
Revista Mormaço
Published in
4 min readJun 13, 2022
Enquanto A Luz Durar em Cor, de Susano Correia (2020)

Acidentalmente fiz um experimento. Acompanhe.

O mês passado foi o mais frio dos últimos 32 maios na cidade de São Paulo. A sensação térmica batia 0ºC em alguns momentos da madrugada, no começo da segunda quinzena. Um amigo veio me visitar e quis fumar um cigarro, então fomos pra varanda. A fim de manter a temperatura do apartamento, fechei a porta de correr, e lá ficamos até ele querer entrar pra pegar outro cigarro.

Quem disse que a porta abria? Não tinha quem fizesse. Sacolejo algum amolecia aquele coração congelado. Lentamente, o processo de constatação de que não abriria de jeito nenhum foi ganhando corpo, até partirmos para as soluções mirabolantes. Vale ressaltar que estávamos no oitavo andar — venta bastante — e os dois celulares estavam lá dentro. Isso era em torno de 1h da manhã. Juro que cogitei gritar pedindo ajuda a uma trupe de três muito doido que tava passando na frente do prédio na hora, mas desisti. Ia ser demais.

Como não tinha maçaneta do lado externo, somente aquela tranquinha minúscula, e deslocar a porta do trilho estava difícil demais, tivemos que quebrar o vidro da janela basculante que fica do lado da porta. Ao girar a chave, percebemos que somente uma mão humana poderia ter feito aquele movimento de tranca. Depois de catar os cacos, tentamos algumas vezes — agora do lado de dentro, claro — bater a porta com força (bem mais força do que o que eu tinha colocado antes), pra ver se trancava sozinha de novo. Nada.

Dia seguinte, o vidraceiro olha pra mim com cara de boa notícia e diz: “Isso aqui é rapidinho, pô. No sábado, a gente traz o novo já…” SÁBADO?! Queridão, hoje é quarta-feira. A madrugada foi um suplício. Não dava pra esperar. Quem passou pela Luís Antônio nesse dia, lá pelas cinco da tarde, me viu com uma garrafa de whisky, dois rolos de fita crepe e um pedaço enorme de papelão na mão. Provavelmente a única solução que pelo menos 30 mil pessoas em São Paulo tinham à mão contra o frio.

Ainda assim, tava demais, então decidi, já que as residências aqui não têm calefação, comprar umas velas. Vai que entupindo o apartamento de vela não dá uma esquentadinha? Tinha nada a perder. Comprei duas das mais parrudas e mais de 15 daquelas clássicas de quando falta luz. Para minha não tão grata surpresa, as maiores eram as que justamente produziam a chama de menor intensidade. E, mesmo abusando das mais finas, o efeito foi muito pouco relevante. O resultado fui eu cheio de vela na mão e, depois que o frio ficou mais educado, e meu querido amigo foi-se embora, ainda tinha a possibilidade de dar um clima todo charmoso à minha solidão.

Desde então, toda noite acendo as duas velas grandes, que parecem que têm duração infinita, pra reduzir gradualmente a luminosidade da casa e deixar o sono chegar. Aos poucos fui me habituando à proposta, abraçando os mecanismos arcaicos de iluminação e, um dia, querendo escolher a meia que ia usar pra dormir, ao invés de acender a luz de novo ou usar a lanterna do celular, resolvi que ia iluminar meu armário com a vela. Que ideia.

Notei que a chama ficou consideravelmente mais fraca, depois que eu tirei ela de seu devido lugar, onde ela brilhava cada noite mais forte, com o estúpido intuito de reproduzir algo fora da minha realidade, caminhar pelos corredores de um mosteiro com um lampião. De início eu ri. Falei “vai idiota, olha aí o que você fez”. Mas depois que eu coloquei a vela de volta na mesa, a chama permaneceu minguada. Nem com uma injeção de gás de isqueiro, ela não recobrava a intensidade de antes. Aí começou a bater uma tristeza. Eu olhava pra vela profundamente arrependido de ter, na ânsia de alimentar uma fantasia inútil, prejudicado irreversivelmente a fonte de luz e calor das minhas noites.

Não tive paz. Ficava prostrado, encarando a chama, como se meus olhos fossem de alguma forma torná-la outra vez estável e intensa. Ela só chegava até a parte azul, sem a cabeleira amarela. Isso me fez começar a ver as coisas de uma outra forma. Essas velas mais grossas, diferentemente das tradicionais de apagão, não iluminam pela chama diretamente, mas pela incandescência das paredes de cera, iluminadas e aquecidas internamente. E agora aquela vela estava com uma coloração azul. Podia não estar iluminando tanto quanto a colega dela, mas com certeza tinha características e propriedades que a outra não tinha, consideravelmente mais elegantes; únicas.

Quando apaguei as duas velas e fui dormir, me chamou a atenção o barulho, quase inaudível, de algo se desligando. Algum gadget, ou coisa parecida. Enquanto a outra, normal. Barulho de fogo apagando e a fumacinha subindo na brasa restante do pavio. Acordei de sonhos intranquilos e adiei tanto quanto possível o momento de reacendê-las. Nunca pensei que seria algo dessa magnitude a me tirar a parcimônia em algum nível. Eu estava nervoso, tenso por acender uma vela. Quantas e quantas coisas não me passaram pela cabeça. Olhava aquele pavio pela metade, aquele suco de cera ressecado e pensava na quantidade de analogias e metáforas que cabiam naquele cilindro.

Até que finalmente taquei fogo. Cuidadosamente inclinei a vela de lado, acionei o isqueiro e quase fecho os olhos pra não ver. Mas o que vi foi a vela mais forte. Ainda com chama instável, de início, mas mais intensa. Com seu charme preservado, a coloração particular roubou da luminosidade um pouco de força para existir. Meu alívio, então, me causou tanta estranheza quanto a frustração e ansiedade anteriores. Foi quando eu finalmente percebi.

Algumas coisas, às vezes, só precisam de um tempo.

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