ainda não era verão

Karol Teles
Revista Mormaço
Published in
2 min readMay 2, 2024
monique manceau, crète 1975

adoraria te contar sobre a história de quando atravessei o continente sozinha
e estive cercada por paisagens diferentes de tudo que já vi

você não faz ideia
de quanta liberdade havia

no caminho, aprendi diferentes maneiras de ler e de escrever um poema
enquanto o mundo ao meu redor ia, aos poucos, sendo abandonado

aconteceu de os lugares não terem a mesma vivacidade, o mesmo sentido
não havia mais qualquer sensação de casa
e eu levava no corpo o cansaço de alguém que estava sempre a chegar de uma longa viagem

costumava contemplar a imensidão do céu
e a beleza que fica no mundo depois que o sol se põe

não compreendia mais as palavras
entendia, unicamente, os sentimentos
e traduzia os segredos do mar apenas com um jeito diferente de
olhar

eu tentava apenas esquecer
mas o mesmo vento estrangeiro soprava em todos os lugares,
o mesmo perfume em todas as cidades

o rio desaguava. e no meu colo estavam todas as fotografias de infância
do tempo que você ainda gostava de
sorrir comigo

todos esses anos eu não sabia que, no fundo,
o que eu sentia era saudade

do acalanto das palavras boas, da reza no ouvido,

do brilho que havia no olhar..

jeito estranho de perceber a passagem do tempo. tudo mudou de repente, se transformando em pequenos gestos preenchidos de ausência.

enquanto isso, me satisfaço ao lembrar
das manhãs que surgiam atrás dos nossos quintais
quando ainda éramos pequenos,
inocentes
infinitos

ao olhar para o passado, entendi que
quase tudo se perdeu
menos o amor, a vontade de ter permanecido

e quando finalmente encontrei conforto no tempo
percebi que não estava no mar a minha casa
nem nas outras tantas varandas ao redor do mundo
mas sim em todos esses lugares que, por medo de perder, escolhi deixar para trás

eu sei que por aí serei sempre uma menina
e que você ainda guarda todos os meus versos e livros empoeirados
com palavras que carregam, junto a mim, a inocência das recordações.

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