Antes do trabalho

Lucas Belo
Revista Mormaço
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4 min readFeb 24, 2022
Robert Mapplethorpe — Phaidon

Se não foi sonho e a perua escolar, na realidade, buzinou duas vezes para chamar o filho do vizinho, eu estava atrasado. Queima minha barriga porque não queria checar as horas, ao contrário, preferia brincar de adivinhar e prolongar essa sensação agridoce de caráter contagioso, que agonizava tudo: em alguma medida antecipava o sabor das broncas passivo-agressivas que viriam dos chefes ao longo do dia, mas, também, dominava e invadia o território erótico, fazendo explodir de dor e quentura o sexo já em vigília.

Se eu tomar banho, escovar os dentes, vestir a roupa e colocar a comida do cachorro em sete minutos, de repente, tenho chance de chegar no trabalho naqueles dez minutos de tolerância que permitia o horário. Isso significa que terei de aguentar o peso de um dia completamente normal e entediante para, assim, aliviar esse desejo incompreendido de gozar a vida. É injusto e indecente com os seres da nossa espécie o acordo tácito firmado por não sei quem: “bata o ponto depois a punheta”, como se o sexo fosse domínio secundário do nosso corpo.

Faço o razoável e saio dentro dos sete minutos premeditados, desprezando o sono, a insegurança, o estresse e a pungente excitação, tal qual uma pessoa comum que busca o controle do próprio corpo. Me conforta saber que todo mundo desperto em uma quarta-feira de manhã é obrigado a praticar sua capacidade de reprimir os próprios desejos, se não fosse desse jeito, certamente as fronteiras entre o meu e o seu seriam mais dúbias, as famílias menos rígidas e as leis mais indulgentes. Um rebuliço.

O trem lotado não convida ninguém, mas também não expulsa. Sendo preciso, te enclausura até quase matar de asfixia entre uma estação e outra, mesmo assim, te esperam com a pressão baixa os conhecidos do vagão de sempre e os estranhos recém empregados. Com dificuldade, consigo chegar até o corredor — o único lugar onde era possível afastar um pouco as pernas para apoiar a mala no chão — mal dava para respirar! Uma a uma, no intervalo das chacoalhadas da máquina, as pessoas procuravam tirar as roupas de frio que naquela temperatura só serviam para sufocá-las. No meio de vozes mecânicas e portas automáticas, começam a surgir brilhantes e lascivos os braços, os dorsos e as cinturas de todas as cores e aromas, como se estivessem reclamando seus lugares de prioridade nas incumbências dos assalariados.

Num segundo eu me derreto. As janelas embaçam e o cheiro forte de suor só faz lembrança à primitividade do meu comportamento. Delirante, busco pensar nos inventários, chamados abertos e ordens de serviço a serem cumpridas, tudo para escapar desse estado febril que embriaga o motor das ações. Mas eu fisgo, involuntariamente, um olhar de cumplicidade, quase fascinado, quase indiferente, de um rapaz de gel no cabelo e mãos delicadas. Ele estava nas beiradas da porta sem reagir aos empurrões que os outros passageiros lhe davam para conseguirem entrar no trem, parecia querer, de propósito, ser jogado para mais próximo de mim. Tomando o cuidado de não perder seus olhos de vista, afastei para trás a mochila que estava no chão e fiz aparecer um espaço para o meu novo amigo. Ele não esperou que eu sugerisse qualquer coisa, deslizou, prático e escorregadio, à minha frente, só que de costas.

Não tinha perigo nenhum, as pessoas só sabiam enxergar suas casas no meio daquele monte de trabalhador, assim, roçar a bundinha saliente que dançava de um lado para o outro rente às minhas calças jeans era o menor dos desaforos contra elas. Além de que, nada no rosto nem nada na posição discriminava um ato sexual, estávamos os dois como todo o resto: comprimidos e embalados pelos solavancos do trem, com a diferença de que estávamos procurando nos divertir. Às vezes, ele descia uma das mãos do ferro para brincar de apalpar o tamanho do meu membro, eu o ajudava escondendo seus movimentos atrás da minha mochila. A viagem estava indo bem.

Perto de chegar na estação-destino, doía estar ereto por tanto tempo. As pessoas se preparavam para sair e eu querendo desesperadamente entrar. O rapaz, descuidado, se afastou também em direção à porta, desvelando o volume copioso da minha calça. Eu não liguei, porque se percebessem alguma coisa estranha não falariam nada, ainda estavam buscando a coragem para seguir o trajeto. Todos desceram e eu segui os passos delicados, quase coreografados do rapaz do trem. Ele rumava sem pressa na direção oposta das catracas. Parei quando percebi que se não corresse, nada adiantaria os esforços para não atrasar e pensei: antes o compromisso. Como se aquele sorriso tão gracioso em frente a porta do banheiro não me provocasse ardência e confusão no corpo inteiro. Olhei para o relógio e resolvi que sete minutos a mais ou a menos não fariam diferença. Fui ao encontro do puto sabendo que valia mais ceder ao rigor do sexo que ao do expediente de trabalho.

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Lucas Belo
Revista Mormaço

Escritor, educador social e estudante de Letras (UNIFESP). Comprometido com as histórias que vivem debaixo do pé de umbu ou perdidas nas vielas da cidade.