Antes musa que medusa

Mônica Silva
Revista Mormaço
Published in
2 min readSep 2, 2024
Fotografia de Otto Stupakoff

Te chamei porque queria escrever e precisava de espelho. Planejei poema lúcido, cinismo acadêmico. Mas eu não era pedra; era vidro, com buracos a imitar janelas. E você existiu, subtraiu a vontade de abstrair, debruçou-se em meus vazios e fez sentidos, fez sorrisos, depois silêncio. Eu te quis como uma filha sedenta de cuidados, bebendo nas suas palavras a letra do meu caminho. Você me quis como alegoria do desejo por uma mulher, ao lado de tantos outros desejos. Tenho pensado muito no que fomos, na paz que não pudemos ser porque você queria o mundo, e eu acreditava que queria você. Tentei aprender a querer do seu jeito, amplo, sem limites. Mas os limites cercam o que para mim é valioso. Ninguém coloca cercas num espaço sem sentido nem afeto.

Amores inventados também doem quando acabam, membro fantasma latejando ausência. Por que não aprendemos com os pássaros? O pouso perto, espontâneo e fugaz vale infinitamente mais do que o canto engaiolado, ressentido das asas inúteis.

Apesar de tudo, tivemos poesia. E porque houve poesia, vinho tinto e danças noturnas eu me enganei que te convenceria a desistir do mundo. Nossa paixão pelas letras, nosso tesão nos poemas compensando a falta na cama. Queria ter agora uma paisagem pra olhar enquanto escrevo, em vez desse guarda-roupas escancarado de memórias.

A verdade é que, quando te conheci, eu não me conhecia. E quando soube de mim não te quis mais. Estas linhas não são pra você. Desmontei a arapuca. Escrevo pra você ter onde morar. Deixar de ser sintoma, me hipnotizar. Antes musa que medusa.

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Mônica Silva
Revista Mormaço

Escritora, revisora e leitora, necessariamente em desordem