Arrependei-vos

Masso Otembra
Revista Mormaço
Published in
5 min readJan 24, 2022
Maria Auxiliadora. Colheita de Flores, 1972

Silvina acordando lembrou de Crescêncio; deitada ainda, pegou e deu um suspiro. Aí sentou na beira da cama, botou os pés na pantufinha e foi em até o guarda-roupa; na porta mesmo já estava lá, o vestido, branco, o mesminho de sua mãe. Silvina, passando a mão no vestido, pensa. Pensa e despensa, até que não guenta, assume e formula a dúvida: ele vem, será?

Silvina conhecia Crescêncio de menino. Naquele tempo, Crescêncio era o mais mofino da rua; mirradinho, ia mal em todas brincadeiras dos moços. Era bom só nas de corrida. Era ligeiro, Crescêncio. Seu triunfo era mesmo esse: chegar no primeiro lugar e receber os parabéns de Silvina, mesmo se ficando sempre vergonha pura. Silvina sempre gostava de ver ele correndo porque achava bonito os modos dele de rasgar o vento. Silvina e Crescêncio estavam sempre de grude e até moravam de junto, e suas mães eram comadres; por isso ele estava sempre na casa dela e ela na dele igual. Silvina e Crescêncio dentro das paredes do quarto, o quarto dentro das paredes da casa. Livres das opiniões dos meninos da rua, só ali brincavam de casinha. Tomavam aquela brincadeira como sendo bem é uma profecia, um preparo, para uma coisa até bem diferente daquela que sempremente acontece. Porque ela botava ele a fazer tudo de casa, dividiam negócio de lavar louça, fazer comida, passar roupa e tudo. Silvina dizia que não era besta e Crescêncio via naquilo uma justiça. Tudo quanto era gente via o carinho que existia naquilo que era uma boa amizade de crianças. Assim, até lá os catorze anos, com-quem-serás de aniversário, casamentos na roça e presépios de Natal, Silvina e Crescêncio toda vez o par. Todo mundo crescendo, Silvina ia ficando a mais bonita da rua, e mais: também a mais intrigante, por causas de ter um jeito desamarrado, vazio das nove horas. Crescêncio sempre mirrado, e só por ter o apreço de Silvina virando o mais alvo de invejas. Até que um dia chegou Libório, um menino que vinha do São Paulo, branquelo demais para ser bonito, mas ele trazendo certas modernidades foi que fez dele o menino mais invejado da rua, aí com pouco ele logo quis alguma coisa com Silvina, que com ele não queria um nada. Um dia falou com Crescêncio o que ele achasse disso, de Libório querer ela. Crescêncio suou forte, se fosse branco igual Libório tinha ficado vermelho. As palavras tudo embolando em seu pensamento, ele ficou igual a vó dele quando estava bordando e a linha enrolava dando um nó. Crescêncio descolado de seu juízo e sempre achando falta de coragem para dizer do seu coração a Silvina, disse que davam um belo casal. Silvina queria outra resposta, uma que deixasse ela dizer o coração dela a Crescêncio também; no lugar, perguntou, com voz baixa e surpresa, igual quem confere o pulso de uma pessoa que já se vê sem esforço que está morta: tu acha?. E Crescêncio confirma dizendo que acha sim. Com pouco aconteceu de virarem Silvina e Libório o casal mais bonito da rua, e Silvina mais Crescêncio para sempre boa amizade, ele até sempre dando conselhos, ouvindo lamentos dela, e tudo. Mas Crescêncio dentro do quarto, o quarto dentro da casa, a casa livre dos olhos do mundo, ali dentro ele chorava, chorava tudo e mais se comia, até daquela coisa ruim que é o ciúme. Um dia Silvina mudou da rua e por causa disso se esfriou a amizade: ela já ia morar com Libório. Crescêncio de sua vez sempre ficou na mesma rua, só de casas mudando.

Naquele dia, Crescêncio acordou lembrando de Silvina. Não sendo a mesma amizade de antes, mesmo assim ainda se faziam contato. Ali ainda deitado, com o celular na mão, decidiu escrever todo seu coração a ela. Na beira do fim de declarar o amor que lhe tinha, ouviu um ô de casa vindo da porta. Era Diomiro, o carteiro. Dentro de casa, Crescêncio abriu o envelope e viu nas letras douradas daquele papel chique os nomes de Silvina e Libório, Silvina e Libório casando, Crescêncio lendo e chorando, até que vira o verso do convite e na letra de Silvina escrito miúdo no canto: “meu amor, eu confesso, estou casando, mas o grande amor da minha vida é você”.

Silvina entrou na igreja, no caminho em até o altar chorava, nem muito da emoção de ver Libório, mas da emoção de não ver Crescêncio, e também de não ouvir a voz de Crescêncio dizer que tinha algo contra aquele casamento quando o padre perguntou. De jurar, ela jurou, diante de Deus, Nossa Senhora e toda a companhia celeste, mas Silvina também tinha uma coisa contra aquele casamento, e se não disse? Calava para sempre? Saiu da igreja pensando nisso.

Na porta o motorista já esperava no lado do carro com a porta aberta. Ela entrou no carro mais Libório, e ficou toda a vida com a cara virada para a janela vendo a rua. No caminho para o hotel, passaram de carro num bar.

Moço, pare o carro aí fazendo o favor rapidinho.

Silvina desce do carro, Libório fica, e ela vai até no bar e se monta uma cena desconjuntada. Uma mulher com vestido de noiva, sentada na calçada de um bar com a cabeça de um homem no colo. Crescêncio. Silvina olha para o garçom ali perto.

Como é que você deixa uma pessoa nesse estado, porra?

Foi ele que pediu, senhora, que se dormisse a gente deixasse.

Crescêncio desacordado mas também já desdormindo, abre os olhos e vê a luz do poste luzindo atrás do cabelo dela volumoso, a pele escura e um olho gentil. Silvina. Crescêncio ri, sente um riso ainda maior debaixo da pele e de novo dorme.

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