As manhãs, os meninos.
Um homem velho atravessa, apressado, a interminável faixa de pedestres com o cadarço desamarrado. Assim como as outras pessoas, ele não se interessa em contar, um por um, os carros parados à sua frente, nem na coincidência de serem quase todos da mesma cor. Anda com o jeito de quem tem coisas exclusivas e importantíssimas a serem feitas, como trabalhar em um escritório assinando cheques, e confina a curiosidade em suas próprias olheiras. Altivo, olha para os pés e em seguida ergue uma das sobrancelhas, sinalizando aos possíveis intrometidos a sua completa ciência e acordo com a situação desarranjada.
Entre os carros, os meninos de cabeça pelada penetram o trânsito assumindo risco como investidores, costuram os corredores disputando inconsequências com os motociclistas só para resgatar a bola murcha que escapuliu das margens da avenida onde jogam futebol o dia inteiro. Deliberam suas vidas às suas mães, ao anjo da guarda e aos professores, e partem em busca da bola.
O homem velho quase chegando até a calçada repara os meninos e a bola que vinha mais ou menos em sua direção, então, volta alguns passos vacilantes, vacilantes pelo cadarço mas também pela dúvida, afinal, o semáforo de pedestres piscava vermelho em alerta. Ele domina, enfim, a bola com o pé, olha para o trânsito e para os garotos como se fossem o ângulo do gol e se curva para amarrar o sapato. O homem apressado termina com calma sua amarração, à medida que os carros buzinavam suas urgências. Em seguida chuta a bola, devolvendo-a para as crianças com a habilidade de um perna de pau.
Ele chega até a minha banca de jornais, exausto mas orgulhoso, pede o isqueiro emprestado e enquanto acende um cigarro, diz que as manhãs para aqueles que acordam cedo são como minas de ouro pouco exploradas, a menos que você seja um menino da cabeça pelada, nesse caso, as manhãs são apenas um campo de futebol improvisado. O homem velho tinha olheiras ainda maiores de perto, toda sua virtude estava escondida ali dentro, eu sabia e pensei que, de vez em quando, seus olhos consumidos podiam resgatar um pouquinho de cada vontade perdida armazenada ali dentro. Eu lhe respondi que, na minha opinião, as manhãs são as crianças do dia, é o período mais jovem, por isso o frescor e as amenidades, nada nos resta senão acreditar nelas. O velho pegou um jornal e deixou o dinheiro em cima do balcão, sumarizou a primeira página e em seguida voltou a atenção para os meninos da cabeça pelada, que mais uma vez invadiam o trânsito. Ele fez sinal de despedida como se portasse um chapéu e já a caminho do seu destino disse que alguns dias são feitos para terminarem mais rápido que outros e que preferia desse modo. Quantas desavenças com a vida um homem coleciona até se tornar velho, pergunto a mim mesmo. Abri uma cruzadinha e assisti a manhã envelhecer os meninos.