Até ficar boa

Carla Guerson
Revista Mormaço
Published in
2 min readMar 1, 2023
colagem autoral, 2023

Sempre tive os pés pequenos e nunca soube fazer uma coleção. Passei cinco verões na praia, seis invernos na fazenda e descobri que tinha um ano a mais quando voltei para a casa da minha avó. Era tarde da noite e ela veio me dizer que, no ano seguinte, eu ia pra escola.

O ano seguinte começava amanhã.

Depois das aulas, acompanhava meu pai nas entregas que ele fazia. Adorava andar na boleia da caminhonete. O elevado do carro me dava a altura que as pernas não me garantiam. Era uma delícia ver o mundo de cima, ali onde só os adultos tocam.

Meu pai dizia pra todo mundo que meu sonho era ser veterinária, porque eu adorava bicho. Ainda adoro. Desisti deste sonho alheio quando descobri que os bichos morriam, mas nunca fui vegetariana. Só tenho pena de comer coelho. Dá uma dó ver o bichinho ali estatelado. São fofos demais pra morrer. Quando tive um peixinho, quase decidi que não comeria mais peixe. Quase. Mas o peixe do aquário é pequeno e não tem carne. O peixe que a gente come é grande e menos fofo. Além disso, meu peixe morreu logo, então pensei: se é pra morrer mesmo, melhor que seja saboreado.

Quando eu tinha quinze anos perdi a virgindade num toboágua: a água forte rompeu meu hímen e eu sangrei por uns minutos, no banheiro. Quando fui transar pela primeira vez, preferi dar o cu. Nunca contei isso pra ninguém porque não achei relevante. Mas agora que você me pediu pra contar uma coisa inusitada sobre mim, achei que talvez fosse isso o que você queria saber.

Ah, eu também tinha uma letra horrorosa. Não quando era pequena, foi coisa mais recente. Igual letra de médico mesmo. E não sabia cozinhar.

Cozinhar eu ainda não sei. A letra eu treinei até ficar boa.

*a Revista Mormaço é uma publicação independente, coletiva e voluntária da Mormaço Editorial. você pode nos apoiar dando palminhas nos textos e compartilhando-os. nos encontre nas redes sociais com o @mormacoeditorial.

--

--

Carla Guerson
Revista Mormaço

Feminista, escritora, geminiana, mãe, leitora compulsiva. A favor dos incômodos. Autora dos livros “O som da tapa” e "Fogo de Palha".