atemporal

Larissa Lima
Revista Mormaço
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2 min readFeb 15, 2022
@laralbr

o relógio nunca lhe servira pra contagem do tempo.
não conseguia com tal objeto masculino alinhar
velocidades
intervalos
ritmos
micropausas.

quando precisava que os três ponteiros disparassem num só,
ele pirraçava na vagareza.
se desejava o congelamento do trio,
era ligeiro como quem corre contra juros.

vai ver ele sabia que tinham juros ali.
e eram altos.

tanto que depois vivia ela pedindo que ele recuasse, só mais um pouquinho.
e tentava não cair na ladainha dele de que
— todo recuo é atraso.

ele dizia que estava ela comprometendo o seu trabalho.
teria que pagar essa conta.
só pela ruindade dele, passou ela então a controlar as pilhas.

pronto!

quando não queria ser refém,
desparafusava e degustava o poder diante do tempo congelado.
ainda que num objeto sem vida.

depois,
cada ponteiro ria a sua desordem.
a pilhada era ela.

do que adianta tanto se controlar a ponto de não viver?

então foi ela se desfazendo dele a cada noite um segundo a mais.
botou cortinas
quebrou despertadores
adiou alarmes
abriu-se pra angústia
da imprevisão.

mas insistia um espaço que mais parecia momento
então chamava
i n v a s ã o do tempo.
e aí não tinha jeito,
fazia-se ele presente pra impedir a emenda dos dias.

era o modo de provar a sua insistência,
a permanência num movimento inaceitável.

em algum momento teria ela que esvaziar o cinzeiro,
repor a cartela de droga renovada a cada mês numa consulta às pressas,
cuspir a secreção acumulada nos peitos
(por dentro).

e assim daria de cara com ele,
verdadeiro contratempo.

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Larissa Lima
Revista Mormaço

escrever é como cachoeira que sustenta a própria queda.