Bem-vinda ao mundo.

Rafaela Maria
Revista Mormaço
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4 min readNov 1, 2022
foto por Rafaela Maria

No dia que escorreu a primeira hora de sangue pelas minhas pernas eu fui considerada gente, mas gente gentinha, dessas que o peito ainda não pesava o suficiente pro meu pescoço passar pano no chão. Abandonar o que eu conhecia de humanidade foi antes de qualquer coisa um assassinato à garota que nunca vou conhecer, mesmo estando no corpo dela. Toda aquela pele agora está esticada, formatada, em alguns cantos dá até pra notar rasgos de quando a maniva fermentava no meu corpo. São até engraçados esses traços que não sei de onde vieram. Não sei como é vestir outra pele, ser outra coisa além de uma visita sútil das quartas à tarde, ou um porre da noite anterior, ou um bom dia ao meio-dia, ou uma gastrite quase curada. Até que é gostoso ser esse limbo que beira a inexistência que eu teria se não nascesse em mim um par de peitos e duas polpas de bunda.

Mulher depois que é chamada pela primeira vez de mulher sente sair dos olhos o cianeto da mandioca moída. Veneno tão fatal para o corpo que, depois de engolido, ele deixa de ser corpo e passa a ser carne. E carne se come puxando pelos dentes e mastigando até desintegrar na boca. Quando soube que passaria a ser mulher e que não poderia mais agir como gente, lembrei do que me disseram uma vez na igreja com a história de Adão e Eva. A culpa é toda nossa, mesmo. Afinal, é de nós que sai esse suco ácido de maniva. Como poderia Adão, tão encantado pelas nossas peles moldadas de barro, acreditar que o fruto aguado do Éden guardaria o maior pecado de todos? Como poderia Adão entender que o homem nasceu porque tinha que nascer e o que sobrou de ruim foi dado à mulher? A culpa é toda nossa, mesmo. A culpa do pecado, do veneno, da acidez, da expulsão do paraíso e, principalmente, é culpa nossa mesmo querer compreender o que é inquestionável.

Eu tive que matar ele, sim. Tive que matar Adão com esse meu suco-veneno. Precisei matar. O púlpito dele ficou vazio, as pessoas sofreram pela falta do messias na terra, mas precisei matar Adão. E diante disso eu só posso pedir que Deus entenda que não matei Adão por ser Adão, matei Adão por ele ter apontado o dedo pra mim e ter me tornado a extensão da serpente. Matei Adão porque é mais digno assumir a culpa de ir em busca do conhecimento do que continuar aceitando esse castigo de sangue e alma doente. Matei Adão porque ele tirou de mim todos os gritos guardados há séculos e bebeu dos meus olhos esse resquício de pecado pra colocar de novo a culpa em mim. Matei Adão e mataria de novo se fosse necessário.

Deus não entendeu muito bem esse meu caso. Disse que era errado matar, que Adão era meu marido e não fazia por mal, que ele só queria me ensinar o que era certo, que naquela atitude dele existia um amor pelas curvas de uma mulher que ele jamais conseguiria deixar de notar. A culpa foi minha então. E entendi Deus, mas não aceitei o que ele fez com o meu pecado.

Ele tirou tudo de mim, Deus. Pergunte para Maria. Adão tirou tudo de mim! Como posso estar sendo castigada por ter matado esse homem que já estava na terra esperando a minha morte? Deus, o senhor deu para Adão a vida. Por que eu também não mereço a vida? Por que o senhor diz que eu estava errada em cravar uma faca nas partes dele? Deus, assim como meu veneno escorre pelas redondezas da minha bochecha, eu também quero que escorra o de Adão. Deus, ele bebeu o meu veneno rindo da minha impossibilidade de dizer qualquer coisa desde que eu nasci. Deus, ele tirou tudo de mim, por isso tirei tudo dele também. Deus, meu ato foi piedoso, enquanto ele me matou em vida eu matei ele silenciosamente, de forma calma, só com algumas colheradas de maniçoba. Dor alguma ele sentiu, Deus. Dor alguma o homem, filho teu, vai sentir. A dor é nossa.

Deus não quis assumir a culpa do sangue escorrido mesmo eu dizendo que a culpa era toda de Adão. Me mandou caçar um pai que aceitasse toda a dor contra mim e me mostrasse como senti-la. Me mandou ficar acordada de madrugada, olhando para as bolas de Adão expostas, nuas, arrancadas. Me mandou pensar.

quando foi por volta das três da manhã eu lambi a minha maniçoba no chifre do Cramulhão.

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Rafaela Maria
Revista Mormaço

Estudante de Letras pela Universidade de Brasília, designer gráfica, fotógrafa e escritora de contos, poesia e críticas literárias. ig: @rafaelamria