Bula
não há remédio
mais eficaz
para as dores do corpo
do que lembrar do pó
não há bálsamo
mais curativo
para as tristezas da alma
do que
desalinhavar os nós
e conviver
com as cicatrizes
das costuras
anteriores
aparar arestas
entregar os pontos
desopilar os humores
desencravar as unhas fincadas no passado
abrir os olhos
descolar a pálpebra da pele lentamente
lembrar o sonho que teve
desejar voltar a ele
mexer o dedinho do pé
estalar o dedo da mão
encher os pulmões e checar se o ar está entrando
sentir alívio ao constatar que está
soltar o ar em um sonoro bocejo
assustar o gato com o ruído
que dá um salto, mas logo volta a dormir
virar de bruços
chorar baixinho
desejar ter feito tudo diferente
colocar os pés no chão
sentir o chão gelado
lembrar que a friagem pode causar gripe
desejar ter febre para sentir alguma coisa
abrir o chuveiro
chorar baixinho no banho
secar os cabelos na toalha
se olhar no espelho
encarar-se despenteada
os olhos caídos
as marcas do tempo carimbadas na face
sorrir baixinho
Ir até a cozinha
encontrar o saco de pães
abrir a janela
escolher os pães mais frescos
e jogar tudo aos pombos
afinal,
há que se ter muita coragem
para viver todos os dias
a base de migalhas