cândida

Masso Otembra
Revista Mormaço
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5 min readFeb 1, 2024
estão representados elementos que podem ser construções ou maquinário industrial. há pelo menos cinco desses elementos. em rpimeiro plano, uma caixa pequena. o chão parece ser de azulejos, mas as linhas são irregulares. a iluminação é dura, as cores predominantes são escuras, mas as estruturas são iluminadas, produzindo sombras marcadas. a fonte de luz parece vir do mesmo local de onde se posiciona a pessoa que vê a obra. a paisagem retratada alonga-se para o fundo da tela.
Lume Ero. Dois casais celibatários (2016)

O cara acabou de mijar, olhou o próprio rosto no espelho, apertou o botão de abrir a torneira pelo gosto de ver abrir e fechar devagarzinho, automaticamente, sozinha, mas a mão, mesmo, não lavou. Na verdade, nem na água não tocou. Ele gostava muito de banheiro de shópin. Gostava principalmente daquele tipo de torneira. Apertou de novo, mas sem botar a mão na água, ajeitou o cabelo no espelho, e saiu, ainda ouvindo a água cair na pia. Esse era o tipo de cachoeira preferido dele. Que linda a tecnologia. O barulho da água caindo na porcelana. Saiu do banheiro e entrou direto no fluxo das pessoas caminhando pelos corredores, passeando no domingo dentro daquela luz branca, fluorescente, ascética — mas gentil com as bactérias e os vírus. Gostava daquele tipo de torneira porque aquelas de rodar envolvem outro movimento. Quer dizer, se você saiu com a mão suja e tocou na manípula pra abrir a torneira, aí pronto, você lavou a mão; agora você volta a tocar na manípula pra fechar, mas dessa vez com a mão cheia de água; nisso, a sujeira da mão, que você tinha passado pra torneira quando abriu, já se misturou com a água e não está mais intacta no metal frio. O tipo de torneira preferido dele era aquele de apertar porque a sujeira que vinha na mão de quem tocou ficava ali tinindo, fresca, direto do forno que é debaixo das calças, simplesmente porque a pessoa não precisava colocar a mão de novo pra fechar. Pensava em quanta mão suja de rola já podia ter passado ali onde ele tocou depois da mijada. E, por isso, gostava daquele tipo de torneira. Não gostava de rola. Não! Não três vezes. O negócio dele era xereca, sabe?

Mulher, eu gosto mesmo é de mulher [ele diz, ignorando que tem mulher com rola e homem com xereca], tá ligado?

Não gostava de rola, e a pessoa, mulher e, principalmente, homem, que, na vida, acusou ele desse crime já levou até ameaça:

Se você não calar a boca vou enfiar a minha em você e você vai ver quem é que gosta de rola.

Uma ameaça particularmente viril. Não gostava de rola. Não. Ele gostava do rastro da rola, do fantasma dela, e, por isso, não lavava a mão quando saía do banheiro, e esperava que todos os outros homens-com-rola do mundo participassem do mesmo pacto que fizera desde quando nasceu o primeiro pentelho. Se alguém perguntasse:

Homem de rola, qual é sua missão?!

Bom. Ele não saberia responder. Mas vamos responder pra ele. Ele queria deixar o rastro da rola dele em todo lugar do mundo. Esse era o maior projeto de vida que tinha. Pra isso, não economizava esforços. Onde pudesse tocar, tocava. Quando ia pelo corredor do shópin, tocava nas plantas, sob o pretexto de testar se eram naturais feitas só por Deus ou plásticas, feitas por Deus com a ajuda do homem. Do homem, mesmo, e (gostava também de pensar nisso), no caso de serem plásticas, especulava se, lá na fábrica onde foram feitas, o cara que fez também não tinha coçado o saco e botado a mão na planta artificial depois. Quando se tratavam de flores e tinha muita dúvida, principalmente quando era uma orquídea, até cheirava, pra ter certeza. Tinha acabado de fazer isso. E sentiu uma satisfação particular em sentir cheiro de plástico. Pensou que aquela flor era prima distante de uma camisinha. Achou engraçado. Ele sabia rir sozinho. Precisava.

Voltou a andar, passou a mão na boca, com a desculpa de ajeitar o bigode. Cruzou com um corredor de banheiros, bom, por que não? Entrou, já chegou olhando no espelho e, antes que ele pudesse apertar o botão da torneira pra colecionar mais fantasmas, viu pelo reflexo Macedônio sair dos mijadores. Macedônio era um colega do trabalho. O coração acelerou, deu um frio na barriga, mas ele disfarçou e, quando Macedônio ia chegando perto das pias, antes que ele pudesse chegar em qualquer uma delas pra lavar as mãos, ele:

Macedônio!

Opa! E aí, irmão!

Macedônio levantou a mão direita na altura da barriga, ele levantou a esquerda, bateram as mãos, fez aquele estalo, e, com a força daquela ligação única que se tinha criado entre eles naquele breve instante, tanto ele quanto Macedônio se puxaram para o centro daquele encontro, e os ombros encostaram. Que tecnologia! Estavam reconhecidos um pelo outro como os homens que eram e antes que Macedônio pudesse dissolver aquele vínculo descolando as mãos ele tomou pressa e logo colocou a outra mão que estava solta no ar sobre a mão de Macedônio e Macedônio instaurou nele uma enorme felicidade porque colocou também a outra mão dele e assim ficaram as quatro mãos coladinhas uma na outra. Ele gostou, e o medo que sentia até fazia parte do paladar naquele banquete, mas eles soltaram as mãos. Ele e Macedônio conversaram. Pouco. Mas falaram alguma coisa que ele já nem sabia o que era porque respondia automaticamente, tão automaticamente quanto a torneira sabia fechar sozinha. Despediram. Ele achou que já podia voltar pra casa. Queria voltar com o fantasma de Macedônio. As mãos cheias de veias que Macedônio tinha, os dedos grossos, os músculos desenhados no antebraço peludo, com os pelos que iam até o começo das mãos, Macedônio tinha um xeipe!, queria ter o xeipe de Macedônio e, porra!, que rastro, que rastro!

Chegou dentro do carro, ligou, passou as mãos em todo o círculo do volante, segurou, manobrou pra sair da vaga do estacionamento, chegou a porta de casa, girou a chave, abriu, encontrou a esposa na sala, deu um beijo na testa dela, falou que ia dormir porque o dia foi cansativo e pra piorar não achou o que saiu pra comprar, tirou as roupas, botou um pijama, tirou devagarzinho o edredom da cama, deitou. Colocou o edredom por cima de si outra vez, deitou de ladinho, foi enfiando uma mão dentro do xorte, passou devagar pelos pentelhos, até que chegou na rola e segurou, com a força que veio do fantasma da rola de Macedônio, que devia ser forte, e por isso pensou que Macedônio só pode ser viado, porque deve ter sido o fantasma da rola de Macedônio que possuiu a dele, porque ficou dura. Não gostava de rola, mas gostava do nome rola, que era também o nome de um pássaro. Sorriu sozinho. A outra mão ele foi levando fechada até a boca, aí levantou só o polegar, que tecnologia!, o polegar, botou dentro, e foi dormir chupando dedo.

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