nilo nobre
Revista Mormaço
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5 min readDec 15, 2023

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Café

Vou contar pra você um negócio que me deixou muito encucado por um bom tempo. Faz alguns meses desde que começaram a pipocar queixas de desaparecimento de imigrantes na delegacia. E demorou até que eu encontrasse uma boa pista nesse caso que me tirava o sono.

Já tinha um tempo que os estrangeiros vinham em busca de trabalho nas plantações de café. Então, de vez em quando sumia algum. Nunca entendi para que tanto estardalhaço. Sempre sumiram pessoas nos cafezais, mas enquanto eram pretos ninguém se importava. Quando imigrantes brancos começaram a desaparecer, os superiores nos obrigaram a nos embrenhar no matagal até saber seu paradeiro. Não havia nem garantias de que seriam encontrados. Vai ver tinham só voltado para suas terras do outro lado do mar. E a gente procurando aqui feito besta.

Acontece que eu estava enganado. As investigações iniciais não deram resultado de nada. Os cafezais eram enormes e era muito difícil percorrer tudo a pé procurando por pistas. Um dia veio correndo um dos trabalhadores para a delegacia. O mandaram lá assim que sentiram falta de um dos colegas. Fui direto para a plantação. Lá, tive ajuda de outros colhedores, mas só depois de muita conversa com o fazendeiro que não queria liberá-los da apanha.

Após um dia todo de buscas e com a ajuda dos outros trabalhadores, esquadrinhamos tudo naquele terreno. Fui chamado às pressas quando encontraram um rastro de sangue. Pedi aos colegas policiais que solicitassem reforços, dispensei os funcionários para que a multidão não alertasse os captores e segui a trilha. Ao avançar, percebi que havia muitas outras manchas pelo caminho. Sangue seco dos mais diversos estágios de decomposição. Era impressionante que ninguém tivesse notado aquilo ainda.

Saindo do cafezal, o rastro seguia mata a dentro por uma vereda estreita. Me aproximei com cautela até chegar numa casa de taipa. Do lado de fora havia inúmeros sacos de fertilizante, logo senti a podridão do estrume. Não parecia ter ninguém por perto. Avancei. Quanto mais próximo da casa, mais odor de putrefação se intensificava. Dei a volta checando as janelas e vi que a porta dos fundos estava aberta. Entrei para averiguar.

O mais estranho era que a casa não tinha muitos cômodos. Era como um grande salão com um telhado sustentado por forquilhas de pau branco e paredes de barro que, por fora, davam a impressão de ser uma casa comum. No centro, uma grande mesa que mais parecia um altar e algumas cômodas e armários espalhados pelo ambiente.

Como já era final da tarde, demorou um tempo até eu conseguir perceber que havia muitos símbolos estranhos nas paredes e na frente do altar tinha um desenho de alguma criatura inconcebível. Embaixo dela as letras Merka-tho. Já me preparava para sair quando ouvi o converseiro lá fora. Parecia que vinham de todos os lados. Não tinha para onde fugir. Entrei num móvel que parecia um misto de armário e guarda-roupas velho e torci para que não me achassem.

Dentro do guarda-roupas o odor de carniça se misturava com o de ervas, pimentas e produtos químicos. Antes de fechar a porta para me esconder, vi vários potes de vidro com órgãos dentro. Fiquei observando por uma brecha da madeira. Entraram uns oito homens, divididos em pares. Cada par trazia um corpo. Cadáveres mortos de várias formas. Tiros, pauladas, facadas. Colocaram um deles no altar e se dispuseram em volta. Começaram a cantar uma música estranha e gutural que mais parecia um monte de porcos indo pro abate com uma dezena de gatos enforcados. Me arrepiei todo.

Depois da cantoria, seis deles foram embora deixando dois para trabalharem nos corpos. Só consegui ouvir poucas coisas do que falavam enquanto serravam os braços e pernas do defunto sobre o altar.

— A safra esse ano vai ser a maior de todas.

Só então reparei que aqueles homens não eram trabalhadores dos cafezais. Eram bem cuidados demais. Pele branca, olhos claros, bem-vestidos. Só podiam ser fazendeiros ou filhos dos senhores do café.

Um deles devia ser desses que vai para a cidade estudar medicina. Nunca vi alguém esfolar um homem com tamanha habilidade. Rapidinho ele abriu a barriga do cadáver e tirou as tripas. Ou era médico ou era muito experiente nesse ofício. O outro parecia novato e só trazia vidros para guardar os pedaços.

— Toma cuidado aqui com o fígado. Depois a gente pode vender pra fazer remédio.

Ele parou um instante contemplando algo.

— Olha esse coração! Esse aqui vai deixar os gringos doidinhos pelo nosso café! Traz um pote ali do armário que esse aqui tem que ser guardado com cuidado.

Gelei quando vi o mais jovem vindo na minha direção. Não sabia se corria ou se ficava esperando. Até podia dar voz de prisão, mas eram dois e o do altar sabia manejar uma faca. Da altura que eu tava fiquei encarando as pernas do segundo que parou em frente ao armário. Já estava escuro lá fora e as lamparinas não iluminavam todo o salão. A porta ao lado abriu e ele não encontrou um vidro vazio. Passou a mão pro lado e pegou um que eu afastei. Então fechou a porta e voltou.

Tremendo, continuei assistindo enquanto o fazendeiro preparava os órgãos. Dizia que tinha que separar tudo direitinho. Órgão de preto era para o café vendido aqui e dos imigrantes era para a plantação de exportação.

Era tarde da noite quando eles saíram e pude sair do esconderijo. As costas doíam e a carniça tava impregnada na roupa. Tive que jogar fora porque não prestou mais.

Voltei depois com os colegas policiais e tacamos fogo em tudo. Na casa, nos sacos de fertilizante e nos celeiros de café. Mas nada disso foi divulgado. Os barões do café fizeram uns acordos com os políticos e espalharam uma história de que Getúlio Vargas mandou queimar para manter o preço no mercado.

Você pode achar que estou ficando louco. Quem é que acredita que o café brasileiro é viciante porque era adubado com mandinga feita a partir de corpos de pretos e imigrantes? Eu mesmo não sei se acredito. Mas os barões tão aí até hoje plantando como se nunca tivesse acontecido nada.

E não sei você, mas desse dia pra cá, nunca mais tomei café que eu não saiba da procedência.

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nilo nobre
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Arqueólogo, Historiador e aprendiz de escritor e quadrinista. Brazilian Archaeologist, Historian and aspiring writer and comics artist.