Calor crônico

Hortência Siebra
Revista Mormaço
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3 min readApr 1, 2024
Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Há uma gota de sangue em cada poema, diria Mário de Andrade. Quanto a mim, digo: há uma gota de suor em cada caractere, incluindo os de espaço. Um poema sobre amor até parece possível depois de uma ducha fria, mas, imediatamente depois dela, tem a tolha, a roupa, a cadeira e o computador, e o poema escorre pela testa. E já não tem amor nem poesia que resistam aos 60º Celsius dessa sensação térmica.

É bem verdade que ainda subsista, contudo, a necessidade de partir a linha, como se num poema estivesse, de cortar a ideia de amor em versos pequenos, só para ter no espaço da página algum respiro, ou esperança de. Mas, ainda que haja a necessidade, não há na mão a firmeza pro corte, porque ela vacila, e tudo o que as duas sabem agora diz respeito a tomar uma água ou ligar um ventilador. E o poema se sufoca numa prosa esticada, como se pretendesse alcançar aquilo que foge à sua forma.

Enquanto tudo isso se passa, o amor vai virando só mais um desejo, não por uma ou outra pessoa específica, mas por uma coisa ou outra que se assemelhe a um ar-condicionado ou a uma piscina. Tem desejo no olhar pro souvenir, o querer de atravessar o vidro, de se embrenhar no líquido e de agitar todo aquele globo até fazer cair por cima de mim a neve que estava no chão.

E é esse querer-se verter em movimento e em frio que faz mexer tudo ao redor do que antes era só mais um poema e que agora se transforma em miragem. O calor e a miragem, o globo de neve e o ar-condicionado, a piscina, tudo isso mobilizando tanto a gente por dentro, como o amor faria. Tudo isso me pondo a escrever, como tantas e tantas vezes ele também já me fez. Mas sei que nada disso faz sentido para quem não está apaixonado, tampouco para quem está sob a neve do Himalaia nesse momento.

Tenho a consciência de que todas essas palavras estão grafadas numa língua só compreendida com os dêiticos aqui e agora que se projetam do poema, ou da prosa, para o mundo ao redor dele. Mesmo com toda a incompreensão e com o desconforto de insistir nesses caracteres envoltos em suor, escrevo. Escrevo como se isso fosse preciso para respirar. Escrevo como se essas palavras carregassem o encantamento do tempo, da chuva, do sereno. Escrevo como se plantasse árvores, ou desenhasse copas e sombras. Escrevo procurando o vazio do vento. Escrevo.

Escrevo até uma crônica enquanto tento achar, escondidos em meio a todo esse calor, o poema e o amor. Escrevo.

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Hortência Siebra
Revista Mormaço

Autora do À Margem do Impossível (2021), do No sexto dia (2022) e dO inverno à tarde (2023)