Cansada

Larissa Lima
Revista Mormaço
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3 min readMar 19, 2021
captura própria

daqui admiro nuvens que nada se confundem com algodão.
doces nem macias podem ser
porque nada está.
cores que não sei de onde partem e como fazem pra não virar mistura.
e chegam aos meus olhos.
conservadas cada qual numa aquarela
monocromática.

o que está não se é!
elas que dizem.

e marejam e também se gabam pela minha contemplação do espetáculo.
que é disputado, viu?
é mei mundo de avião-drone-passarin-grito de menino pequeno;
que não sabem do meu esforço pra divagar.

mas a graça tá na insistência irrepetível da cena.
ou na minha contemplação?

é que é preciso se agarrar em alguma coisa.
e o quê melhor senão um ponto ao qual não posso jamais alcançar?

então me bota no lugar soprando que é daqui que eu me mexo.
mas dá colo também.

sigo então na minha terra que é duas-caras.
farta ambígua.
de cansaço e de fartura.

pr’onde vão nossas angústias quando não escorrem por algum lugar?

é no que vive que a gente se agarra.

o mistério do cacto tá na enchente que é seu interior.
e não há a quem não sirva.
pois copo d’água não se nega
e a sede é uma das poucas certezas da vida.

se até exposição ao sol virou recomendação de doutor com hora marcada
e pausei a música pois já não se pode mais cantar que são as águas de março. agora transbordando rachaduras.

pra combinar também não há mais verão pra se fechar.

a quentura extrapolou os termômetros
incendiou dentro-fora de nós.
essa secura que só é burlada pela lubrificação dos meus olhos.

e se me permite a contradição
é tudo tão frio feito corpo morto.
desfile de corpo cadáver
escolha seu figurino.

acorda, Cansada!

penso estar sempre sendo chamada. e é o que atormenta meus ouvidos de quando piso o pé fora até quando volto correndo de fome. essa miserável palavra que não passa de trissílaba mas tá em tudo quanto é boca de mulher. de ponto em ponto em cada ônibus, em cada ônibus, de ponto em ponto. no corre ou na espera. no respiro ou no suor. no ronco da barriga ao beijo depois recostado no cangote suado e talvez menos cansado. nos olhos em brasa que lutam pra permanecer de pé já corroídos por cafeína barata. no sono interrompido pra mais um beijo pra acordar, tarde demais porque o ônibus passsss…ou do ponto.

desce, Cansada!

não precisa tá no registro pra ser nome próprio.

então me sinto farta
como essa nossa terra.
bom é que estar farta tem no mínimo sentido duplo
diz sobre tantos e sobras
limites cor-rompidos.

tem vermelho no meu sonho de horizonte.

agora corroído por chuva — de saliva — ácida que tento peneirar pra não vazar no mundo esquecendo que a peneira é toda abertura.
mas nem sempre há de ser assim.

eu não tenho como te provar do que tento lhe encantar
nunca fui boa de garantias.
mas fico otimista quando vejo nuvens
pela janela em movimento.

nem sempre passo do ponto.
às vezes durmo no ponto.
mas aprendi

é no que vive que a gente se agarra.

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Larissa Lima
Revista Mormaço

escrever é como cachoeira que sustenta a própria queda.