Carne e astros

Lucas Belo
Revista Mormaço
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2 min readMay 28, 2021
Robert Mapplethorpe, “Embrace, 1982”

Não era a primeira vez que eu entrava num condomínio, mas o elevador social certamente cheirava diferente. Os cílios longos de Helder transluziam sob o dourado do lugar, pareciam libélulas zanzando sossegadas num lago paradisíaco. A vida assim era muito bela, ao meu ver. Envolvi sua cintura com convicção porque os tesouros possuem qualidades esquivas e, então, beijei-lhe os olhos. As câmeras não podiam discriminar, desde que ele estivesse ali.

Helder tinha um pedaço do céu só para ele, onde moravam suas ideias. Ele me disse sorrindo que o pôr do sol é generoso e que o aquece todos os dias, por isso quase nunca usava roupas dentro de casa, a não ser quando a Mi vinha limpar. O apartamento tinha móveis de madeira caprichosamente lustrados e uma fruteira cujas maçãs eram graviolas e lichias, suculentas como suas coxas.

Eu estou mais próximo do chão, das ruas esburacadas e das vielas mal chapiscadas. As lacraias ainda servem de alimento para os bichos domésticos e as crianças ainda jogam futebol descalças no sol radioativo do meio dia, e nisso há também uma certa beleza, que não me comove, mas enche de volúpia o corpo elétrico de Helder.

Quando é noite, o meu menino se dispõe inquieto feito um lobo, carne e astros são primazia de seu apetite, reviram seu juízo e dão um tom mais obscuro à sua alma. Cinzeiros e algemas metálicas e chicotes e mordaças de couro sobrepõem a mobília em madeira. A Mi sempre tem muito o que limpar no outro dia e eu dou a ele o que eu tenho: carne e astros.

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Lucas Belo
Revista Mormaço

Escritor, educador social e estudante de Letras (UNIFESP). Comprometido com as histórias que vivem debaixo do pé de umbu ou perdidas nas vielas da cidade.