Carteira de pai

Lucas Belo
Revista Mormaço
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4 min readOct 31, 2021
Moonlight (2016), Barry Jenkins.

Ao acaso, apanhei a carteira do meu pai no porta-luvas do carro e percorri, com pouca curiosidade, os compartimentos de plástico, já deteriorados pelo tempo, ensanduichados por um couro azul, vagabundo, desses que foram feitos para durar, no máximo, alguns meses. Ele guarda uma moeda das Olimpíadas e uma nota de dez antiga junto à imagem de Nossa Senhora Aparecida e embora eu quisesse saber o motivo de tal casamento, já tinha desistido de fazer perguntas ao meu pai há muito tempo. Ele não carrega consigo nenhuma certeza, é uma pessoa sem convicção, de respostas ocas e, por isso, eu passei a supor suas conclusões. No caso da santa e o dinheiro velho, certamente ele firmou um pacto entre as duas entidades como um dízimo: ofertar a Deus para que seja recompensado.

A viagem curta exige conversa que não seja tão séria a ponto de ter de interrompê-la com o desembarque, nem tão banal a ponto de deixar explícito o desconforto e a falta de costume com a pessoa. É uma situação delicada, que, normalmente, pai e filho não se preocupam em vivenciar, eles sempre têm o que conversar, é o centroavante lesionado do timão, o novo golf dois ponto zero, o limite de velocidade injusto da marginal. Voltei a atenção para a carteira e puxei seu documento de identidade, ainda conservado, não tinha uma dobra sequer nas extremidades, contudo, a foto denunciava a distância em anos que aquele documento tinha, então, perguntei:

— Que idade você tinha quando tirou o seu RG?

— Acho que vinte e quatro.

— E já tinha entradas?

— E saídas também, se prepare.

Quanto desgosto. Quem precisa de um pai que só tem calvície e moedas colecionáveis para oferecer como herança? Genética ruim e acúmulo de quinquilharias, nem boas lembranças. Eu queria chorar, mas não tinha anuência, porque a tristeza é um direito concedido pelos nossos pais, como um decreto, uma lei aprovada em democracia. Haveria um momento específico da nossa história que caberia aos pais autorizar a delicadeza dos filhos? Acho que a infância precisa ser mais clara, mais generosa e tratar de esgotar as crianças de liberdade para que não sejam limitadas quando adultas.

Em alguns minutos chegaríamos à estação de trem. Meu pai estava me retribuindo a visita que fiz com uma carona até a estação. Ele só funciona na lógica do troco, afinal, ele é cobrador de ônibus há, pelo menos, vinte anos, minha idade completa. Já não enxerga diferença entre pessoa e tostão. Ano que vem ele se aposenta e diz que vai construir uma casinha na beira do rio, lá em Minas Gerais, onde vale a pena gastar com cachaça. Palavras dele. Eu ficarei aqui tão desassossegado quanto a cidade, livre da obrigação de visitá-lo aos finais de semana, mas delirando de saudade e ódio de um pai.

Um último compartimento a ser investigado na carteira guardava uma foto minha em três por quarto. Era a foto que eu tirei para a carteirinha do clube de futebol que não deu certo. Eu tinha olhos grandes e mal humorados que intimidavam junto a pele jatobá envernizada pelo sol. Tive a impressão que se eu cheirasse, sentiria a catinga impregnada nas mangas da minha camisa de time. Perguntei:

— Por que você tem uma foto minha na sua carteira?

— Não lembro, eu a tenho desde sempre.

Num impulso, arregacei o compartimento e tomei para mim a foto que nada representava a ele, mas uma conveniência, tal como o RG, a santa católica, a moeda das Olimpíadas. Não poderia deixá-lo carregar consigo somente a parcela formal da paternidade, porque esse é o mais alto grau de humilhação que um filho pode sofrer de um pai, a piedade. Nada disse a ele, entretanto. Pretendia agradecer a carona e seguir viagem com a foto resgatada, agora, na minha carteira.

A alguns metros da estação já era possível ouvir o sinal avisando que o trem estava se aproximando. Tirei o cinto para adiantar a partida e joguei a carteira do meu pai em algum lugar com extremidade no painel do carro. Abri o nicho da mochila que estava nos meus pés e coloquei lá a foto três por quatro. Meu pai, que já estava estacionando, disse:

— Deixe a foto comigo.

— Por que? — perguntei comprimindo todo o mal estar de anos debaixo da tremedeira dos meus lábios.

— O rio de dinheiro que manejo todos os dias desemboca em outros bolsos. Sendo assim, não tenho nada firme na vida a não ser os meus registros, você sabe.

Ele já tinha estacionado o carro e olhava para a plataforma de trem cheia de pessoas inquietas a decidir que porta escolheriam para entrar. Sem dizer nada, retirei a foto da mochila e devolvi à carteira. O trem estava parado na plataforma, se eu corresse ainda conseguia tomá-lo, mas eu decidi ficar um tempo sentado ao lado do meu pai, alisando o zíper de sua carteira como se o tivesse abraçando. Depois de alguns minutos de silêncio mútuo, eu decidi sair e disse:

— Obrigado, pai!

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Lucas Belo
Revista Mormaço

Escritor, educador social e estudante de Letras (UNIFESP). Comprometido com as histórias que vivem debaixo do pé de umbu ou perdidas nas vielas da cidade.