Catarse

Carol Marini
Revista Mormaço
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8 min readNov 2, 2021

Hoje falei dela na terapia.

Depois de quase dois anos sentando todas as quintas-feiras na mesma poltrona, foi a primeira vez que consegui falar sobre o que aconteceu sem que meu olho se enchesse até se transformar em um aquário de água salgada, onde dois peixinhos pretos nadavam de um lado para o outro, desorientados, até se fixarem nas manchas de mofo da parede branca do consultório. Falar sobre ela era a última coisa que eu queria. A penúltima era fazer terapia.

E agora lá estava eu, sentada com um buquê de girassóis no colo.

Engraçado é que ela vivia dizendo que eu deveria procurar uma terapeuta. Que ironia, não? Eu até tentaria esboçar uma gargalhada mas desde que quebrei o maxilar não tenho tido muita força pra sorrir.

Sorte a minha que também não tenho sentido muita vontade. Foi depois do soco que eu acabei indo pra terapia. Nunca fui de brigar. A última briga que eu me lembro de ter entrado foi na sexta série e era mais uma guerra fria entre mim e a Ruth. A gente trocava beliscões doloridos por debaixo da carteira, depois sentávamos lado a lado na hora do recreio, comendo nossos sanduíches de pão de fôrma em silêncio, enquanto as outras crianças berravam e corriam pelo pátio. Ainda hoje acho que Ruth foi a amiga mais sincera que já tive.

Acontece que esses tempos dei pra entrar numa briga e acabei quebrando o maxilar. Minto. Não entrei em briga nenhuma, porque pra entrar numa briga, você precisa, a princípio, saber brigar. Correção: esses tempos ofereci meu rosto para que um punho semicerrado aplicasse uma força centrípeta na direção da minha mandíbula. Não tenho certeza se a força era centrípeta, provavelmente estava trocando beliscões nessa aula de Física e não memorizei o que significava. Na dúvida, fui pesquisar no Google.

Força centrípeta é a força resultante que atua sobre um corpo e descreve um movimento em trajetória circular. É responsável por alterar a direção da velocidade do corpo e, além disso, aponta sempre para o centro das curvas. Acho que foi isso mesmo. Um punho semicerrado descrevendo um movimento circular na direção da minha cara, apontando bem pro centro da curva do meu nariz e alterando a velocidade do meu corpo, que chegou a zero quando caí desmaiada no chão.

Para toda ação existe uma reação de mesma intensidade e direção no sentido oposto. Terceira lei de Newton.

Quem diria que eu usaria tantos conceitos de física pra explicar a sucessão de fracassos que me trouxeram até essa poltrona marrom com cheiro de naftalina? O soco desferido em minha direção foi uma reação de mesma intensidade e sentido oposto à ação desferida pela minha boca ao lançar uma quantidade significativa de cuspe na direção deles.

Todo corpo permanece em seu estado de repouso caso as forças que atuem sobre ele se anulem. Primeira lei de Newton.

Lembro que meu corpo estava em movimento de repouso absoluto até meus ouvidos serem atravessados por aquelas palavras. É claro que eu poderia ter virado as costas e ido embora. Eu não deveria nem ter saído de casa, mas já fazia mais de seis meses que só descia as escadas do apartamento pra buscar comida e cigarro, e meus amigos insistiram muito pra que eu fosse. Pelo menos uma passadinha. Toma uma cerveja com a gente. E nem foi comigo o papo, eu que acabei ouvindo sem querer o nome dela. Sim, eu sei que Maria Eduarda foi um dos dez nomes mais registrados no Brasil na última década. Duzentos e quatorze mil registros. Sim, eu sei que poderiam estar falando de outras duzentas e treze mil pessoas. E daí? Eu precisava descontar de alguma forma toda raiva que estava sentindo.

Eu preferiria ter dinheiro pra ir naqueles lugares em que você paga pra entrar em uma sala e destruir tudo com um taco de beisebol. Vi isso na televisão uma vez. Mas ralei tanto pra comprar um conjunto de louças de cerâmica lá pra casa, dois pratos, dois bowls pra salada e duas xícaras. Uma das xícaras com uma listra pintada com esmalte. Pra gente não confundir, ela falava. Nunca entendi essa necessidade de não confundir xícaras se 15 minutos depois do café da manhã ela estaria com a cara enfiada no meio das minhas pernas. É que tenho nojo de tomar em outra xícara. A-h t-á o-k-a-y.

Eu precisava. Uma hora ia ter que transbordar. Uma vez li um troço desses de autoajuda que dizia que água que fica parada sem dar vazão vira mágoa. Achei meio idiota, mas enquanto meu corpo se inclinava em câmera lenta em direção à sarjeta, acho que por alguma fração de segundo me veio essa frase besta na cabeça e me senti até em paz. Pelo menos agora essa porcaria de água tinha derramado e corria livre pela calçada, misturada com cuspe, sangue e cerveja das garrafas que quebraram quando eu caí em cima da mesa do bar. Contando assim parece que foi uma cena do Tarantino. Foi mais uma comédia, já que eu tava tão bêbada que praticamente fiz tudo sozinha. O soco provavelmente só ia ter me causado um inchaço leve no dia seguinte, ou nem isso. Eu que fui inventar de cambalear, bater as costas na mesa e cair de cara no asfalto. Ou eu tropeçar na mesa e bater as costas na cadeira, não lembro bem. O resultado final foi o mesmo.

A força resultante é igual ao produto da massa pela aceleração. Segunda Lei de Newton.

A massa do meu corpo movido pela aceleração do ódio que me possuía indo de encontro à mesa, resultando em quinze pontos no supercílio esquerdo, dois implantes dentários e uma cirurgia no maxilar. Só de lembrar me dá vontade de fazer tudo de novo. Tudo não, da próxima eu poderia só cuspir na cara deles, derrubar a mesa e ir embora de forma elegante. Acho um desperdício derramar cerveja assim na calçada. Acho mesmo. Do pouco que eu lembro daquela noite, uma das coisas que me doeu mesmo foi olhar todo aquele líquido amarelo escorrendo ao meu lado na calçada. Eu e a cerveja ali, entregues à gravidade.

A força de atração gravitacional é diretamente proporcional ao produto das massas.

Depois daquela noite, entrei por um período na famigerada fase da negação. Fingir que nada aconteceu. Comecei a ler sobre neuroplasticidade e vi que a gente pode adestrar a mente, exercitar igual a um músculo na academia. Como eu nunca tive muita paciência com academia e não tinha tempo a perder, fui logo pro treino mais agressivo e todos os dias ordenava ao meu cérebro que deletasse todas as informações sobre ela. Cheguei a fazer ameaças, ou você deleta tudo ou eu vou parar de fazer palavras cruzadas e você estará fadado ao Alzheimer.

Minha última tentativa foi apelar pra hipnose do sono. Comprei algumas sessões online. Antes de dormir, você mentaliza o que quer esquecer, repete algumas frases e coloca uma música em frequência alfa-beta-gama sei lá o que. Comecei a ter sonhos bem esquisitos com baleias cantando ópera enquanto dirigiam uma lancha com canhões que disparavam bolas de pus e pedaços de unha na minha direção. Decidi abandonar a hipnose e, como última opção, tentar a terapia. E hoje, finalmente, falei sobre ela.

Como de costume, eu estava reclamando que não consigo entender quando minha samambaia precisa de água ou quando estou prestes a matar ela afogada e me perguntando por que diabos as samambaias emitem sinais tão confusos. Acho que esse era o assunto mais recorrente nas minhas sessões. Era ela quem regava as plantas todas as manhãs. Manjericão, samambaia, jiboia, comigo-ninguém-pode, espada de São Jorge. Era assim, nessa ordem, das que gostam mais de água pras que só precisam de um pouco. Você tem que colocar o dedo na terra e perceber se está úmida. As plantas te avisam quando estão com sede. E eu ficava lá, parada, achando a coisa mais sexy do mundo ela de camiseta amassada e descalça, segurando a xícara de café com a listra de esmalte pintada nas mãos e me dizendo que as plantas iriam me avisar quando sentissem sede. Eu concordava, dizia que ia ser mais observadora e atenta. Ela ria e a gente repetia esse ritual todas as manhãs. Agora, só a samambaia tinha sobrevivido.

E enquanto eu divagava que talvez eu sofresse de algum grave transtorno de falta de conexão e empatia com o reino vegetal, porque eu não conseguia escutar o que aquela criatura de folhagens verdes queria me dizer, a terapeuta fez um gesto com a mão interrompendo minha fala, coisa que nunca tinha acontecido até então nas sessões.

“Não foi sua culpa.”

Fiquei completamente atônita. Paralisada. Quem essa mulher pensava que era para dizer isso? Desde quando terapeutas podem fazer afirmações? Achei que uma das premissas básicas da terapia era o silêncio e a não intervenção da terapeuta. Quero meu dinheiro de volta. Eu sabia que não tinha sido uma boa ideia fazer esse negócio, eu sa-bi-a, quase um ano de tempo perdido. E ela sempre me dizia que eu devia fazer terapia. Quero ver o que ia achar dessa agora, a terapeuta fazendo afirmações. Que afronta, que revolta, que humilhação, que…

Senti um calafrio dos pés a cabeça. Ainda bem que não acredito em espíritos, senão poderia jurar que tinha baixado algum encosto em mim. Depois veio o nó no peito. E eu nunca entendi porque chamam de nó até esse momento. Porque eu consegui sentir como se tivesse uma corda enrolada no meu corpo que fosse sendo apertada e comprimindo tudo por dentro. Deve ser assim que um esquilo se sente quando é envolvido pela sucuri no bote. Esses dias eu li que a musculatura forte e robusta da cobra envolve as presas de tal forma que elas ficam atordoadas e não conseguem escapar. Naquele momento, eu era um esquilo pequeno sendo abraçado por uma sucuri, cujo corpo era formado não por escamas, mas por palavras. Não foi sua culpa. O bote estava dado!

Senti que ia desmaiar, todos os sinais clássicos: palpitação, suor nas mãos, vertigem. Se não foi minha culpa, foi de quem então? Deus? Diabo? Quando não existe quem culpar, o peso da nossa própria culpa adquire uma leveza quase insuportável. Citação minha mesmo. Não encontrei nenhuma lei da física capaz de me livrar do peso que eu sentia todos os dias, pensando se eu poderia ter evitado.

Não lembro bem o que aconteceu nos minutos seguintes. Sei que houve uma grande quantidade de líquidos. Choro, baba, nariz escorrendo e meleca se misturando às lágrimas. Aquelas fungadas profundas que parece que vão sugar toda carne esponjosa do nariz e levar pros pulmões. O pacote completo. Mas como em todos os momentos de grande tensão emocional e crises de ansiedade, em que a gente jura que vai morrer no sofá da sala e luta pra alcançar a caneta e escrever o testamento deixando tudo para o gato, esse também passou.

Quando me dei conta, o ritmo do coração foi desacelerando, as lágrimas foram secando e eu consegui até limpar um pouco da baba que tinha caído na poltrona com cheiro de naftalina. Catarse. Foi essa a palavra que ela usou para explicar o que tinha acabado de acontecer comigo. E por alguma estranha razão, mesmo sem nenhuma dignidade, eu me sentia bem pela primeira vez em muito tempo. Pela primeira vez em quase um ano, consegui desviar o olhar das manchas de mofo na parede branca e encarar a terapeuta nos olhos.

No universo nada se cria e nada se perde, tudo se transforma. Lei da Conservação da Matéria. Finalmente alguma lei da Física pra me consolar. Eu e ela. Ocupando o mesmo espaço, em formas diferentes. Levantei e fui levar as flores no cemitério.

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Carol Marini
Revista Mormaço

“Moro em uma ilha e não sei nadar.” A venda pela Editora Urutau.