CIDADE INVÍSIVEL NÚMERO 23

Beatriz Trimer
Revista Mormaço
Published in
4 min readMay 24, 2022

(ou uma releitura de Ítalo Calvino)

Foto de Beatriz Trimer

Da cidade de Izaura, Margarida lembra quando viu o louco debruçado na cornija de um arranha-céu. Debruçou-se no parapeito do trigésimo quinto andar e olhou para cima. O homem, quinze andares mais alto, andava pela beirada do prédio e parecia cantarolar algo. Ele jogava suas pernas para os lados como se estivesse se equilibrando em uma corda bamba. A gritaria vinha dos prédios ao arredor, com topos de cabeças submergindo dos buracos abertos das janelas. Foram pouco a pouco abafados quando um dirigível anunciou que o louco se afastasse da beirada e fosse de encontro à equipe de resgate. Margarida sabia quem era a equipe de resgate. E só imaginava os rostos assustados da governanta do hotel, os três funcionários e a enfermeira de plantão. Depois encolheu a cabeça para dentro do quarto e pensou naquele resgate do corpo lunático futuramente espatifado no asfalto quente. Balançou a cabeça em negação com a imagem asquerosa e disse em voz alta:

aqui devem existir outros dirigíveis menores a prontidão para agarrar o corpo caindo. ou então eles colocam grandes colchões de ar na base do prédio, como nos filmes.

Terminou de fechar a bagagem e voltou para o parapeito. Não havia mais corpo balançando, dirigível ou cabeças nos buracos das janelas. Foi ao banheiro uma terceira vez, verificou embaixo da cama, saiu. Na calçada os companheiros colocavam suas malas na van preta. Alguns ainda fumavam seus últimos cigarros, outros em ligação e apenas dois no interior do veículo. Ficou olhando a rua com poucos carros. Uma moça passou com sua puma. O gato olhou para ela, obrigando-a baixar seus olhos ao pequeno símbolo preto costurado no seu tênis branco. Lembrou daquele namorado lhe apresentando Cássia:

aqui não há puma que não seja criado pelo capricho de uma moça.

A puma presa em uma coleira, não deixava de olhar para ela enquanto falava com o homem.

e onde está a moça dessa puma?

seu nome é Cássia. ela tem mais caprichos que eu lá em casa. minha namorada tá ali dentro comprando o brinquedo de Cássia.

A namorada apareceu com um rato gigante de pelúcia. Cássia pulou em sua direção e, depois de lamber-lhe a cara, abocanhou o seu novo brinquedo. Levemente assustada, Margarida continuou seu caminho até ser impedida por um cego que, agarrando seu braço, bateu com a bengala na calçada e gritava para a multidão. Foi preciso que outro cego gritasse em resposta para Margarida soltar-se e sair apressada. Nas calçadas daquela cidade de Zirma, a mulher entrou na primeira loja para desenhar uma ancora no braço direito, como dos seus companheiros. Um fuzileiro naval tatuava a nuca ao seu lado. Perguntou-lhe sem muita educação:

quem é o amado, minha senhora?

uma capitã de fragata. seu nome é Margarida.

então desenha uma florzinha.

Margarida ainda lembra da risada solitária do soldado. Ele ria e pulava ao mesmo tempo. Isso fez com que o tatuador errasse. O homem continuou na loja concertando o erro de sua risada, quando Margarida foi embora com o braço envolto em filme plástico. Depois que desviou de outros cegos gritantes, ela entrou em um trem subterrâneo. Ficou trinta minutos ouvindo as reclamações de suas mulheres gordas entregues ao mormaço. Foi quando o Comandante a chamou para dentro da van, que ela levantou a cabeça. Sentou-se entre o motorista e o superior que exalava um cheiro de perfume doce e nas bochechas trazia alguns leves toques de batom vermelho mal limpo.

você sabe, né capitã Oliveira, que é preciso, nessas paradas, aliviar o cansaço do mar.

Margarida assentiu com o homem e perguntou o que ele pensou sobre o louco do parapeito.

capitã, você não descansou direito.

Margarida debruçou no painel e olhou as cornijas dos arranha-céus.

não há nenhum louco.

o que disse capitã?

Margarida nada respondeu e olhou para as calçadas, vazias de cegos gritando ou de lojas com tatuadores. Aproveitando o Comandante olhando para o retrovisor, Margarida tirou de seu bolso a caixa de fósforo que trazia uma abelha vermelha. Lembrou do dia que o Comandante a fritou junto das batatas, por descuido, em um almoço em Melânia.

chegaremos em Laudônia na semana que vem, Oliveira.

--

--

Beatriz Trimer
Revista Mormaço

O orvalho se tece nas quintas-feiras. Na sexta faço croche. Viajo em ideias na segunda. A adubação nas quartas. Escrevo nos intervalos