cigana lunar

Karol Teles
Revista Mormaço
Published in
3 min readJan 27, 2022
Foto Autoral

o vento, para ela, levava tudo mais embora do que trazia. e quando se recorda dos momentos de fuga e esquecimento, caminha tão lentamente pelas passagens inominadas dos seus pensamentos, que no instante em que se percebe ser, já não é. não foi. um dia despertou, por costume, antes do relógio tocar. só sabia que era frio. frio e dia. pois através de uma janela esquecida, notou uma minuciosa luz preenchida pela sombra dos galhos de folhas lilases que há tempo não eram aguadas, a não ser pelas nuvens. a não ser por suas lágrimas. lágrimas de um passado que permanece instante. a todo tempo instante. às vezes se esquece e volta a sonhar. vive como uma criatura mutável e silenciosa habitando um planeta que há tanto não diz nada. só a cala. qualquer outro poderia reparar sua pouca fala, seu espanto pelo inominado. pelo perigo. pela liberdade. no arriscar crepitante do fim; onírica se transformava.

nos últimos dias, passeou por outros mundos, ouviu uma voz. desconhecida. teve medo. quis fugir. chorou só. mas percebeu que sonhara, somente sonhara, e que sonhos são, na verdade, um engano, um disfarce, lugares míticos de esquecimento.

a morte é que nem sonho, se a perguntassem, ela diria

que a vida também.

mas por que tanto desconfiava do real? e não se inquietava com o invisível? com a fantasia? com a imaginação?

se a perguntassem, diria que é porque é assim, subitamente ilógica, incompreensível como poeira. rasgando horóscopos e guias astrais, ignorava todas as buscas incessantes por sentido. pensava que nem mesmo o cosmo seria capaz de intuir um significado ao mundo. uma vez, sentiu num sonho, seu corpo se transfigurar da atmosfera, atravessando o próprio inconsciente, se deslocando de casa para tomar conta das estrelas. era noite tempestuosa e permaneceu ali, numa calçada coberta por amnésia. outra vez não esperava por algo ou alguém. era somente ela, sob o esvair de um crepúsculo secular.

repentinamente, sentiu um oco em suas veias, não quis voltar para aquele planeta que havia se tornado inabitável. como se tudo que precisasse ser escrito já tivesse sido, mas tudo que precisava ser sentido, ainda não foi. porque não há outra coisa; a não ser este excesso de desconhecer. faz tanto barulho na cidade, nos becos, no supermercado. finalmente um ônibus vazio, uma rua deserta, ninguém para conversar.

bastou lembrar de tudo que poderia ter sido se não tivesse desafiado o mar. se não tivesse esquecido do caminho, dobrado numa outra esquina, num outro destino. e seus olhos quase não se mexiam, saltando de memória em memória. desfigurando os instantes.

de novo o silêncio.

se perguntou como que aquele tempo ficou guardado na memória daquele menino. e por onde aquele amor foi se esconder. mas a estrada era demasiada longa, não quis saber, só entendeu. não poderia ir nenhum centímetro a mais em direção ao passado. preferiu manter-se distante de tudo que chega e vai embora segundos depois. só não lembrou que não poderia continuar fugindo; havia um deus para assassinar.

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