Confira primeiro capítulo de “Entre a vida e a morte, há vários documentos”, do autor Michael Maia

Mormaço Editorial
Revista Mormaço
Published in
11 min readJun 4, 2024

Em meio a um café e outro, Antônio analisava processos burocráticos no trabalho, a pilha de papéis diminuindo com o tempo. A luz branca em toda a repartição trazia uma sensação fria, que fica mais potente com o ar-condicionado “culpa de Ana Luísa”, colega da mesa ao lado que insiste em deixar a temperatura em dezoito graus mesmo no inverno. O trabalho não é monótono, Antônio sempre o considerou intrigante, é soma e exclusão de fatores; cada montante de papel é um processo de aplicação de uma pessoa que decidiu morrer.

A morte tornou-se um direito de cada indivíduo na so ciedade. Todos têm direito à vida e à morte digna. Após cinco anos de discussões no cenário político mundial, a morte foi legalizada em muitos países. Mas claro que não foi de imediato que a discussão entrou em voga. Tudo começou com um narcótico simulado em laboratórios caseiros de países subdesenvolvidos, e a situação logo chamou a atenção dos superiores da ONU.

De início, a droga mortalis era usada apenas em peque nas doses, deixando o usuário adormecido por no máximo dez minutos. O usuário adentrava o mais profundo modo de sono existente, o R.E.M., e, ao acordar, ele poderia narrar a mais impactante e excelente experiência já vivida em seu subconsciente, se lembrando de todos os acontecimentos como um sonho vívido em que encontrava pessoas já falecidas e amantes perdidos. Um
sonho para que todas as pendências fossem resolvidas. Porém, um tempo depois de despertar, o usuário falecia; o cérebro parava imediatamente, e logo em seguida o coração.

A droga ainda continuou transitando entre países pelas mais inusitadas e criativas formas que se pode imaginar. Ao mesmo tempo, criou uma dor de cabeça em todos os combatentes ao narcotráfico no mundo. Com velocidade, ela chegou a todas as cidades. Morrer tornou-se fácil. Em seis meses o número de mortes aumentou drasticamente em todo o mundo, do Norte ao Sul do planeta, deixando os chefes de estado em modo de
alerta. As notícias eram exclusivamente sobre a droga, imagens em todos os meios possíveis de comunicação eram de pessoas nos cemitérios enterrando os seus entes; imensas valas tiveram que ser criadas para suportar tantos corpos. Morrer virou fácil, simples e, como se propagava nas ruas, era a melhor experiência em vida.

Após inúmeras tentativas de frear o consumo da droga, a ONU e diversas organizações políticas e econômicas decidiram em consenso que a melhor maneira seria deixar a cargo de cada país o controle interno do narcótico

[…] As Nações Unidas pregam a liberdade para o ser humano viver a sua vida dignamente da forma como quiser, como também é de seu direito poder morrer da maneira que escolher. Fica a ofício de cada estado, nação, país criar a sua política interna para supervisionar e aplicar uma política de Nova Morte. […] — dizia o médico-diretor nomeado, em uma conturbada transmissão.

No país em que Antônio vive, criou-se o Departamento da Nova Ciência, onde trabalham diversos setores da nova política. É de fato importante mencionar que nada começou a funcionar de uma hora para a outra. Foram tempos difíceis de discussões, protestos, regulamentação, aumento do tráfico e revolta — e, em menor dose, apoio — da população. Mas então nos encontramos cinquenta anos depois, em meio a uma luz fria em um prédio alto no centro de uma grande metrópole onde Antônio, excelente
profissional concursado no departamento da Nova Ciência, lia os processos de aplicação. Trabalhar no “prédio da Nova Morte”, como os amigos chamavam, era um trabalho comum no imenso e largo edifício, que se dividia nos setores administrativos, clínicos e laboratoriais da Ciência.

Ele pausou o trabalho, pegou o celular, que vibrava na gaveta da mesa, e viu o nome da mãe no visor.

— Sim? — Antônio atendeu, ainda concentrado no trabalho.

— Boa tarde, filho, tudo bem com você?

— Sim, mãe, e você? Nós acabamos de nos falar durante o almoço, aconteceu alguma coisa?

— Não! Está tudo bem… Estou ligando para saber se seu pai e eu podemos ir ao aniversário da sua irmã com você hoje à noite, o carro ficou no mecânico…

— Claro, pego vocês às oito?

— Perfeito, vou avisar a sua irmã. Ela queria passar aqui mas, pelo tom da mensagem, anda muito estressada, não gosto de encontrar com ela assim.

— Mas você vai encontrá-la hoje às oito…

— Nada como duas taças de vinho para relevar o que ela for falar, meu filho.

Ele riu baixinho, e os dois se despediram. Já eram por volta das cinco da tarde, Antônio tinha um compromisso no andar da Comunicação Oficial da Nova Ciência, ao qual não podia faltar de maneira alguma. Passou pelas mesas da repartição, sentindo alguns olhares o acompanharem; todos sabiam para onde ele iria naquele momento.

Após anos de dedicação ao Sistema Administrativo da Nova Ciência da Morte, Antônio tornou-se um profissional exemplar e dedicado em analisar cuidadosamente os processos de aplicações. Ele sabia não apenas todo o organograma da instituição mas também como o sintético (ele se recusava a chamar de droga) funcionava no cérebro do indivíduo e todas as etapas do início da aplicação até o estágio final. Com os anos, ele tornou-se a figura da comunicação interna. Os profissionais do setor o amavam, pois,
além de todo o conhecimento, Antônio era bonito, sabia se comunicar e instruir sobre o assunto. Depois de tantos anos de vídeos institucionais e de excelente trabalho, em alguns meses ele assumiria o cargo de presidente do órgão administrativo.

Antônio chegou ao andar da Comunicação. A luz fria do seu local de trabalho não existia ali ou, se sim, era atenuada pelos sofás coloridos e pelas mesas cheias de apetrechos dos colaboradores do setor. Logo à porta do elevador, uma mulher baixa, de cabelo curto e terno azul, o aguardava ansiosa. Eles já se conheciam.

— Estamos prontos para começar a entrevista. O presidente-geral acha melhor gravarmos agora à tarde e ela ir ao ar hoje à noite, em meio ao jornal. Amanhã sua secretária vai lhe avisar sobre a coletiva de imprensa, que acho que está marcada para às três da tarde — despejou a mulher em poucos segundos.

— Eu vou ter uma secretária, Regina?

— Como assim? Ninguém te avisou? Você vai ter uma sala própria no andar superior, Antônio!

Ele riu da cara de susto que ela fez. Regina era uma mulher ansiosa, andava rápido, falava olhando para todos os lados possíveis. A brincadeira de Antônio a fez parar e coçar a testa.

— Você um dia vai me matar, Antônio — repreendeu ela.

Entraram no estúdio de gravação e lá havia algumas pessoas carregando cabos, posicionando câmeras, além de uma mulher sentada em uma poltrona de frente para outra. Após os cumprimentos, Antônio iniciou o que sabia fazer de melhor: falar da organização, da Nova Ciência, citar os números ao longo dos anos e, por fim, agradecer
aos diretores pelo novo cargo.

Após a gravação, Antônio andou pelo centro da cidade, indo em direção a sua casa. O sol já se despedia, e o céu avermelhado se misturava com as luzes da cidade; os carros buzinavam para um aglomerado de pessoas manifestando na frente de um dos prédios de atendimento da Nova Morte, no qual eram feitas as aplicações para o processo. Antônio cerrou os olhos, passando pela multidão. Todos os cartazes chamaram a sua atenção, e o que o intrigou foram todas as cores das roupas — a mistura da coloração
forte com estampas o deixou incomodado.

Passadas algumas horas, ele se encaminhou para um restaurante próximo da cidade, dirigindo o carro e levando os pais para o evento da noite. No caminho, eles sintonizaram a rádio para ouvir a entrevista de Antônio. A mãe, no banco detrás, sorriu e olhou pela janela, o pai permaneceu calado, olhando para o display do painel; a luz colorida refletida no seu rosto o deixava com uma expressão enrugada e preocupada.

Enfim chegaram ao local e foram ao encontro da irmã, Luzia, que estava de pé do lado de fora do estabelecimento. Era uma mulher alta, usava um vestido vermelho (cor pouco comum nos dias atuais) e um batom da mesma cor, que deixava seu rosto vivo e seus olhos ainda mais vibrantes. Ela acenou quando os viu e se apressou em abraçá-los. Informou onde estavam todos os convidados — na área separada após todas as mesas,
local que ela tinha reservado para o aniversário. Logo iria se juntar a eles, estava esperando a esposa que fora estacionar o carro.

Antônio acompanhou os pais pelo restaurante. Ambos eram quase da sua altura; a mãe, um pouco mais baixa, usava um vestido cor de creme e o cabelo preso para cima; o pai, um homem de ombros largos, passara parte da vida servindo ao exército. Sentaram-se e cumprimentaram os conhecidos, amigos de longa data da família, os colegas acadêmicos de Luzia, algumas pessoas do cenário político, e um ou outro parente
distante que só aparecia em certas ocasiões — em geral, em velórios ou em festas como essa, na qual o convidado não pagaria pela comida nem bebida.

Luzia e a esposa chegaram e, após cumprimentarem todos, se sentaram no meio e iniciaram as comemorações. A noite foi regada de risadas, bebidas servidas e estômagos satisfeitos. Quando Luzia levantou-se e foi conversar com um ou outro convidado, Antônio também saiu de seu lugar e foi em direção à cunhada, Tânia, antiga colega de faculdade e companheira de noites de estudo.

Tânia era uma mulher de cabelos curtos, postura ereta e olhar penetrante. Era frequente homens se sentirem intimidados ao iniciar uma aproximação — Antônio, anos atrás, havia dito isso após alguns drinks. Se cumprimentaram com ternura, depois de meses sem se verem, mesmo morando na mesma cidade. Ela e Luzia não paravam em casa,
ambas viajavam muito a trabalho.

— Como ela está? Não me responderam mais desde a última visita ao médico… — Antônio não perdeu tempo em perguntar.

— Está tudo bem. Escuta, depois que as pessoas forem embora, segura seus pais um pouco aqui com a gente, tá? Luzia e eu queremos conversar com vocês três.

Ele concordou e assumiu a difícil tarefa de segurar os pais até o final. Seria um sacrifício para Antônio também, visto que no outro dia teria que acordar cedo. Seu estômago revirava de ansiedade ao pensar na nova função no trabalho.

Os convidados foram se despedindo, até que sobraram apenas os três sentados. O pai tomava um whisky e contemplava o jardim do restaurante, adorava plantas e todas as suas peculiaridades. A mãe conversava com Antônio, em meio a risadas, sobre uma vizinha que deixara o seguro de vida para a filha e o gato. Luzia puxou duas cadeiras para perto deles e Tânia sentou-se em uma, mas a irmã de Antônio ficou de pé, com a mão no ombro da esposa, os anéis reluziam sob a luz amarela do restaurante.

Não havia mais tanto barulho de conversas, e apenas ao fundo ouvia-se a cozinha se despedindo de seu horário noturno — os copos sendo lavados, o tinir dos talheres na lavadora e algumas conversas bem baixas entre os cozinheiros. Luzia, com o vento batendo em seu vestido, aparentava estar mais alta, esbelta, e o cabelo balançava um pouco, algumas de suas tatuagens pelos braços estavam à mostra. Ela pegou uma taça, encheu de champanhe, bebeu um gole e olhou para os três.

— Sabe, vocês são as pessoas mais importantes da minha vida, os três pilares que me ajudaram a chegar aonde cheguei. Eu não seria uma pessoa tão bem resolvida sem o apoio incondicional que recebi neste últimos anos, pessoal. Uau… Nossa, isso é extremamente difícil… — Ela respirou fundo, como se estivesse tomando coragem. Há alguns meses retornei ao médico para os exames de rotina. Desde o último tratamento de câncer, virou de praxe retornar sempre, nós duas no caso, Tânia e eu… Infelizmente, encontramos algo que não queríamos…

A mãe suspirou com pesar, já imaginando o que viria a seguir.

— Está tudo bem, mãe — Luzia continuou. — Mas cá estamos nós de novo. Porém, decidimos não iniciar o tratamento desta vez, e eu sei — ela olhou para a mãe, totalmente em choque — que não cabe a vocês entender por agora, mas nós decidimos aplicar para morrer. Queremos a Droga da Morte.

— É Ciência da Morte que chama, Luzia — Antônio falou em modo automático, quando percebeu, já estava no meio da frase.

— Você está ficando louca, minha filha? — questionou a mãe, levantando-se da cadeira. — Com os avanços da ciência, qualquer câncer pode ser tratado e você sabe muito bem disso! Como está o estágio dele? Os dois estão avançados?

O pai se levantou para segurar os braços frenéticos da esposa. Luzia apertava os ombros de Tânia, que falava baixo, tentando argumentar com a sogra, até se deparar com o olhar de Antônio. Ele estava imóvel, o rosto parecia ser feito de plástico, a luz amarela o deixava como um boneco, intocável, um manequim no meio de toda confusão que se iniciara.

Luzia e a mãe discutiam mais alto, frases soltas em diferentes entonações que podiam ser ouvidas lá da cozinha, mesmo com a lavadora ligada cheia de pratos.

A mãe pegou seu xale, disse que iria esperar no carro. O pai olhou para Antônio, que entendeu que chegara a hora. Ele se levantou e olhou para a irmã — que tinha algumas lágrimas no rosto e o fitava, esperando uma resposta — , mas Antônio abaixou a cabeça e se despediu das duas com um fraco “tchau”, quase inaudível. Luzia se sentou em uma cadeira e Tânia passou seu braço nos ombros da esposa; ficaram ali até um dos garçons
solicitarem a saída.

No carro, o silêncio prevalecia. Apenas alguns sussurros da mãe e algumas fungadas de nariz, já que as lágrimas se recusavam a descer naquele momento. Antônio dirigia pensativo, deixou-os em casa e, na despedida, o pai disse:

— Tudo vai mudar agora, né?

Antônio concordou. Sim, tudo iria mudar. Ele conhecia o protocolo familiar, sabia de todo o processo pelo qual teriam que passar. Ela não tinha feito nada de errado — de acordo com a Política da Nova Morte, era necessário avisar aos familiares e parentes próximos sobre a sua escolha. Mas agora novos eventos, conversas, avaliações de estado, soma e exclusão de fatores. Quem iria ficar por conta do processo?

Em casa, ele encostou a cabeça no travesseiro e gritou.

Nascido Entre Rios de Minas, cidade localizada na Região do Alto Paraopeba, Michael Maia (@maicud) se formou em Jornalismo pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mas se viu insatisfeito com a área de Comunicação. Escritor de produção rápida, tenta produzir um conto por semana para exercitar a caneta e afinar o lápis. Seu romance de estreia “Entre a vida e a morte, há vários documentos” (Paraquedas, 192 pág.) retrata um mundo distópico sobre dúvidas e escolhas em relação à morte.

*a Revista Mormaço é uma publicação independente, coletiva e voluntária da Mormaço Editorial. você pode nos apoiar dando palminhas nos textos e compartilhando-os. nos encontre nas redes sociais com o @mormacoeditorial.

--

--

Mormaço Editorial
Revista Mormaço

Editora e revista independente de Literatura Brasileira Contemporânea.