Confira trecho de “A finitude das coisas”, novo romance de Nélio Silzantov

Mormaço Editorial
Revista Mormaço
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3 min readJun 4, 2024
Sebo do Messias

“À noite rolaria um show no Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, em homenagem a Renato Russo, no dia 12 de outubro de 1996, vinte e quatro horas após os jornais anunciarem sua morte. Apesar da tradicional falta de apoio dos promotores de eventos da cidade e do poder público, que apenas cedeu o espaço, as bandas locais se reuniram como puderam e realizaram tudo na marra. Como bastava um quilo de alimento não perecível para entrar no recinto, não deu outra, o anfiteatro abarrotou-se de jovens e
adultos, quase todos indumentados com suas camisetas pretas e calças jeans. Ao adentrarmos no show, cumprimentamos umas quatro pessoas que mal conhecíamos e nos dirigimos para a parte superior da arquibancada. Não demorou muito para nos juntarmos a Pavarotti, que até então era apenas mais um conhecido dos eventos que rolavam na cidade.
Enquanto as bandas locais homenageavam o eterno líder de Legião Urbana — com suas batidas raivosas, acordes sujos e estridentes — , Annibal, Erik e Pavarotti dividiam bebidas e cigarros, do início ao fim do evento, se metendo nas rodas punks que se formavam e se desfaziam quando os ânimos saíam do controle, enquanto eu me virava como podia para apartá-los de alguma confusão. A cada música tocada, a cada trago compartilhado, consolidávamos mais e mais a formação do que chamamos de quarteto
subversivo. Uma profusão de sentimentos tomou conta do recinto. Nas estrofes finais de “Metal contra as nuvens”, a atmosfera circundante na arena se suspendeu, como se o tempo se movesse lentamente, intensificando a tonalidade das cores até então ofuscadas pelo luto. A dor e a saudade escorrendo nas faces transfiguravam-se pouco a pouco em
algo mais sublime, feito os raios de Sol rompendo as nuvens densas de uma tempestade. A cena remeteu-me à procissão fúnebre d’O vilarejo dos moinhos. Toda tristeza de outrora transformada em júbilo pelo princípio e fim de uma vida grandiosa.

Ao término do tributo, seguimos cambaleando pelas ruas do centro até o Cemitério da Saudade. Não me recordo de quem teve a ideia de transformar numa tradição o ato de atravessá-lo toda vez que fossemos à Zona Leste — percurso que contrariava a lógica dos atalhos, tornando o nosso itinerário para casa mais longo, embora fosse mais
divertido. Antes de pularmos o muro, conferimos se alguém observava a nossa movimentação. As luzes internas das casas estavam todas apagadas. Apenas um vira-lata perambulava pela rua vasculhando as sacolas de lixo no meio do caminho. Invadimos o cemitério sem dificuldades. O cheiro de fezes, urina, velas, flores, terra mofada, entre entre outros odores indefinidos que proliferavam no local, nos nocautearam feito um jab.”

Nélio Silzantov é e scritor, crítico literário e professor. É natural de Vitória da Conquista, Bahia. Licenciado em Filosofia pela UESB, Mestre em Estudos de Literatura pelo PPGLit/UFSCar e doutorando em Educação pelo PPGE/UFSCar. Edita o blog Ágora Literária e o Foro Literário Sertão da Ressaca. É coautor do livro de não-ficção Ética, Estética e Representações Sociais (iVentura, 2021), organizador da coletânea A novíssima literatura do Sertão da Ressaca (Ressacada Edições, 2023); autor da coletânea de contos BR2466 ou a pátria que os pariu (Penalux, 2022, indicado ao 65º Prêmio Jabuti 2023), e dos romances Desumanizados (2020) e seu recente lançamento, A finitude das coisas (Patuá, 2023).

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