Confira trecho de “Eu só existo às terças-feiras”, romance de Rodrigo Goldacker

Mormaço Editorial
Revista Mormaço
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4 min readJul 1, 2024

Abro o notebook. No desktop, há uma pasta nomeada “registros”. Dentro dela há mais duas pastas, uma delas chamada “registros antigos” e outra chamada “registros da semana atual”. Antes de dormir, já de noite, terei que escrever alguma coisa lá também. O responsável por manter a organização dos registros, porém, não sou eu. Domingo se encarrega dessa tarefa.

Na pasta “registros da semana atual” só há dois registros, um de ontem e outro de anteontem. Abro os registros da semana anterior também, na pasta “registros antigos”, e começo a ler a partir da quarta-feira passada.

Quarta escreveu:

“Dia normal. Mãe cortou o cabelo hoje e já comentei, não elogiem de novo. As matérias do dia na escola estão anotadas em folhas avulsas porque esqueci de levar meu caderno. Mas pelo menos consegui entregar a tarefa de matemática que o Domingo tinha feito. Tiramos oito e meio na prova de Física que eu não lembro quem fez, mas parabéns! Comi um pote bem grande de sorvete, então tentem maneirar nos próximos dias, não queremos engordar muito. Antes de falarem com a Bia, confiram os históricos para se inteirar do contexto: hoje a gente conversou a tarde toda. Estou indo dormir bem cedo, dez da noite.”

Quarta é talvez o mais romântico e esperançoso de todos nós. Está interessado em manter, sabe-se lá como, um namoro com uma garota da escola chamada Bia. Sem pedir permissão, iniciou um contato intenso com ela, criando esforços desnecessários para todos os outros seis que precisam manter de algum jeito esse seu relacionamento. Eu ao menos participo da empreitada dele, mais por piedade do que por qualquer outra coisa. Alguns de nós, entretanto, estão bem estressados com esse quase namoro. Ninguém parece gostar de verdade da Bia além de Quarta.

Quinta foi mais sucinto em seu relato:

“Nada demais. Almocei frutas, fui para a academia correr depois da aula. Também conversei rapidamente com Bia no intervalo e continuo achando ela muito, muito chata. Quarta, você esqueceu de tomar banho de novo e, por favor, não esqueça de pegar o livro A Metamorfose para mim na semana que vem. Espero que tenhamos sorte com Sexta amanhã. Estou indo dormir às onze e meia.”

Sexta não fez o seu relato outra vez. O relacionamento dele com todos os outros dias está bem difícil, em grande parte porque ele gosta de fumar e beber muito. Ele está cada vez mais desconectado de nós. Além de não escrever sobre seus dias para integrar os outros, também não está mais lendo o que escrevemos. Quarta, por exemplo, odeia Sexta porque ele nunca conversa com Bia em seus dias. Quinta o odeia porque Sexta perde com frequência seus livros.

Mas, certamente, quem mais odeia Sexta é o Sábado. No seu dia, ele escreveu:

“Sexta torceu nosso tornozelo. Acordei às duas e meia da tarde porque ele foi dormir depois das cinco da manhã. Para piorar, estou com uma ressaca horrível outra vez e com a boca amarga de cigarros. Tive que ir vomitar assim que levantei da cama. Sexta fumou um maço inteirinho em um dia, não tomou banho e nem foi para a aula. E, como vocês devem ter percebido, ele não se deu ao trabalho nem mesmo de escrever seu relato.

Eu sinceramente não aguento mais. Precisamos fazer algo sobre essa situação porque está impossível aguentar. Entendo que todos os outros dias também tenham seus problemas e sofram de algum jeito com esse comportamento de Sexta, mas eu estou sendo o mais atingido. Isso não pode mais continuar assim.

Comi bem para compensar o dia de antes. Tive que tomar remédio para a ressaca. Tomei banho e fiz os deveres de casa da semana de Biologia e Português. Não fiz os de Química porque deixei pra Terça, ele é bem melhor na matéria. Nossos pais estão um pouco bravos ainda (tomei uma bronca gigante) porque descobriram que não fomos para a aula ontem, então tenham um pouco de cuidado e tato nessa próxima semana. Domingo, desculpa pela bagunça do quarto, não tive tempo nem ânimo para arrumar. Estou indo dormir à uma da manhã.”

Rodrigo Goldacker (@rodrigoldacker) vive de palavras. Trabalha como redator há sete anos e é Mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero. Já publicou dois romances pela Amazon (com um deles, “Eu Só Existo às Terças-feiras”, sendo um dos cinco finalistas do primeiro Prêmio Amazon de Literatura Jovem) e mantém um blog no Medium onde escreve um pouco de tudo. Tem 29 anos, mora em São Paulo e no tempo livre gosta de fofocar com sua esposa, passear com sua cachorra Sunna e de sentar na varanda para ler.

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