Confira trecho de “Um caminho particular do futuro”, novo livro de Ricardo Bernhard

Mormaço Editorial
Revista Mormaço
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3 min readJul 1, 2024

Eu andava pelos cômodos à procura dos meus filhos. Nenhum sinal. A cada passo, eu esbarrava num parente da Marcela ou num amigo do casal, e eles me davam vivas e parabéns, erguendo a taça para um brinde. Eu agradecia, tilintava, seguia adiante. Eu tinha reclamado tanto com o Vicente. Dar um jantar na véspera do próprio jantar de casamento parecia excessivo, estafante, algo feito para esvaziar a ocasião principal. Ideia do pai da Marcela. No entanto, rodando pelo pátio externo, bebericando mais uma taça de vinho tinto, eu precisava reconhecer que estava enganada. O gelo tinha sido quebrado, os convidados tinham sido apresentados uns aos outros, um vínculo de alegria e confraternização tinha sido formado entre pessoas que antes não se conheciam, e, na noite seguinte, a união entre o Vicente e a Marcela poderia ser celebrada por todos como uma conquista comum. Mas cadê o noivo? Cadê o irmão do noivo? Logo depois do jantar, quando os convidados se dividiram em pequenos grupos e continuaram degustando em pé os vinhos que os garçons não paravam de servir, os dois tinham desaparecido na casa enorme.

A noiva, sim, continuava à vista. À vista e linda, debaixo da atenção e dos paparicos de todos que passavam. Ela usava um vestido creme, quase branco, que prenunciava a cerimônia do dia seguinte sem a antecipar. Isso seria uma gafe, um pecadilho da ansiedade juvenil, e a Marcela era sempre dosada, equilibrada, mesmo — como eu descobria naquela noite — quando estava eufórica. Passei ao seu lado, trocamos dois beijinhos no rosto porque as circunstâncias pareciam exigir isso de nós, e ela me deu o seu melhor sorriso. Era como se dali para a frente nós duas pudéssemos ser mais do que sogra e nora, como se pudéssemos ser confidentes. Mas eu sabia que era uma ilusão de momento. Não apenas a distância física se imporia entre nós. Ela pertencia ao mundo da arte, e eu não pertencia exatamente a mundo nenhum. Ela participava da vida carregando certezas e autoconfiança, eu me esgueirava pela vida entre dúvidas e questionamentos. A nossa relação seria formal, correta. Não que houvesse mal nisso.

Pelo olhar da Marcela, eu podia dizer que ela ou não tinha se dado conta do sumiço do seu noivo, ou conhecia o seu paradeiro, ou não dava a menor importância a isso. Eu é que não perguntaria nada. Eu nem sabia ao certo por que eu estava atrás dele e do irmão, mas, como mãe, achei que poderia estar acontecendo alguma coisa.

Carioca nascido em 1986, Ricardo Bernhard (@_ricardobernhard) é autor dos romances Os Vilelas (Editora 7Letras) e Litoral noir (Editora Madrepérola). Diplomata de carreira, serviu em Brasília, Ottawa e Dublin. Desde 2022, trabalha na embaixada do Brasil em Pretória, África do Sul. É casado e tem dois filhos. No seu novo livro, “Um Caminho Particular do Futuro” (editora Reformatório, 296 págs.), o escritor revisita, com inventividade, um tema clássico da literatura: o luto de uma mãe que se muda depois da morte de um filho.

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