Corpo n’água

Jorge Borges
Revista Mormaço
Published in
6 min readNov 15, 2020
Disponível em tumblr.

Num ziguezague nauseante, o bêbado bambeava em sua decadência pelos becos estreitos da cidade vazia ao amanhecer de domingo, enquanto suas pernas fraquejavam pelo excesso do álcool da noite passada. “Onde diabos estou e por que não é na minha cama?” Passou o pensamento pela sua cabeça zonza, sem nenhuma clareza para processamento. “Que tipo de homem chega nesse ponto que cheguei?” Questionou-se em voz alta e embargada, sem que ninguém o respondesse.

Tateando o caminho como um cego sem sua guia, passou pela porta de um recinto vagamente familiar. Apertando os olhos, leu o letreiro desbotado pelo sol e pelo tempo que dizia: “BOTECO 44”. Riu à súbita memória de que naquele lugar sujo e decadente ele mesmo tinha se encarregado de morrer noite passada. Tomou todas que devia e que não devia pra esquecer os problemas da vida, e então deixou que o álcool tomasse as decisões por ele, como um leme sem controle em pleno mar revolto — uma péssima decisão, concluiu.

Sua cabeça doía como se uma embarcação estivesse atracada sobre seu crânio. Continuou a cambalear para longe dalí, descendo uma ladeira estreita, íngreme e de calçamento polido e escorregadio, ladeada por sobrados velhos de estilo colonial. Caiu três vezes antes de chegar lá embaixo, num trecho abandonado da orla onde apenas alguns pescadores usavam um velho cais de madeira. Sentou na balaustrada desgastada e úmida pela maresia e encarou o mar como se encarasse sua própria alma. “Que merda estou fazendo da vida?”, pensou com seus botões embriagados. “Que merda vou fazer de agora em diante?”.

Chorou em espasmos soluçantes e sem lágrimas, até que seus pulmões doessem e sua boca partisse tamanha a secura do seu corpo. “Já chega homem, levante, vá pra casa, tome um banho, se recomponha!” Uma voz estalou lúcida em seu ouvido direito. “A casa dele agora é o mar.” Outra voz, rouca como a de um fumante crônico, praguejou no ouvido esquerdo.

Ficou confuso com a discussão entre os dois ninguéns e desatou a soluçar. Olhou pra baixo e viu que a maré baixa revelava uma série de pedras e corais que nunca tinha visto antes. O mundo girou e antes que conseguisse suspender a cabeça já tinha vomitado três vezes. “Olha só, veja se isso é possível. Um homem feito, nesse estado”, repreendeu a voz lúcida. “O homem está no auge da vida. Deixe-o curtí-la”, falou a outra voz, carregada de ironia, como se assistisse a um filme de comédia.

Quando finalmente teve forças e ergueu os olhos para o horizonte, pode ver uma enorme nuvem negra vindo em direção ao continente. O mar já começava a ficar revolto e as ondas ignoravam a força da Lua ao avançar nas pedras com fúria. O vento também respondia à tempestade que se aproximava, atingindo o bêbado em rajadas repentinas. “Não vê a chuva vindo? Vá se abrigar!”, falou em desespero a voz lúcida, gritando na tentativa de sobrepor o barulho das ondas. “Se abrigar pra que? Você está exatamente onde deveria estar!”, exclamou a outra voz, tomado pela diversão do momento.

“Ora, saiam do meu pé!” — Gritou o bêbado pro nada.

“Queria eu sair desse seu pé sujo de bêbado”, falou a voz límpida, com impaciência. “Você é meu orgulho, homem!”, divertiu-se em êxtase a voz rouca.

Sacudiu a cabeça com força e bateu com as duas mãos na testa, na tentativa de se livrar desses demônios tagarelas que o atormentavam, e pareceu funcionar por alguns instantes, até que a voz límpida voltou à sua sobriedade conciliadora dizendo: “Homem, se recomponha. Não é o fim do mundo! Vá para casa!”.

“Pare de ser um chato, deixe o homem admirar o mundo em fúria! É tudo que ele precisa agora”, respondeu a voz rouca, em tom inspirador.

“Eu não sei o que preciso agora” — pensou em voz alta o bêbado, olhando o mar abaixo de si. Sacudiu a cabeça mais uma vez e perdeu o equilíbrio, caindo nas pedras rumo ao abraço das ondas, e morrendo pela segunda vez.

A tempestade caía pesada em alto-mar quando dois pescadores levemente inebriados numa pequena embarcação decidiram respeitar sua força. Enquanto voltavam para o cais, viram que algo boiava em meio às pedras, quando a chuva também já castigava a orla.

“Olha alí, nas pedras, alí! Ta vendo?”.

“Vixe, tô vendo! É um corpo?!”.

“Minha nossa senhora, vamo lá socorrer?”.

“Socorrer defunto? Eu sou pescador, não coveiro!”.

“Oxe, homem, deixe de ruindade. Você nem sabe se tá morto mesmo!”.

Os pescadores conduziram a pequena embarcação para próximo das pedras onde o corpo repousava inerte de bruços.

“Misericórdia, será que tá morto mesmo?”.

Sem responder, o segundo pescador puxou um leme da embarcação e cutucou o corpo de forma rude. Nenhuma resposta.

“Vira ele aí, bora ver o rosto.”

O espanto dos dois ao ver aquele rosto quase os derrubou do barco que já começava a ser jogado contra as pedras pela força das ondas.

“MINHA NOSSA SENHORA, É AQUELE BEBUM DE ONTEM?!”

“MAS NÃO É QUE É AQUELE À TOA DO BOTECO?! VEM CÁ SEU SAFADO.”

Com a destreza dos dois pescadores, o bêbado foi resgatado para a embarcação. Logo se afastaram das pedras onde o perigo já roçava o casco do barco.

“Olha pra isso! Não tem nem onde cair morto e pagou rodada pra todo mundo ontem. Pega aquela cachaça que a gente guarda pra quando pesca um bitelo! Bora retribuir a benfeitoria desse arruinado!” — Disse o pescador debochado, ignorando o estado desacordado do bêbado.

“Mas olha pra ele, todo branco. Acorda homem, ta parecendo defunto!”

“Isso aí é cachaça! O que eu ouvi foi que perdeu o emprego e foi pro boteco beber todas!”

Os pescadores, eufóricos com a presença daquele corpo desacordado, abriram a outra garrafa de cachaça e no auge da tempestade já tinham-na zerado. Inerte no chão do barco, tinha o copo de vidro amparado na mão morta, cheio de cachaça e também de água da chuva.

Enquanto se abraçavam e berravam canções de pescador com os braços levantados pro céu, os homens ignoravam o corpo, mesmo sendo ele o motivo de toda aquela euforia.

“VIVA NOSSO AMIGO! O MAIOR BEBUM DESSA CIDADE PORCA!” — Gritou um tão alto quanto os trovões que martelavam o céu e tão bêbado quanto aquele pobre defunto estivera mais cedo.

“VIVA ESSA ALMA MISERÁVEL!” — Gritou o outro tomando o copo cheio da mão do defunto e bebendo seu conteúdo.

Num impulso desajeitado, ambos pegaram-no pelos braços, um de cada lado, e começaram a cantar mais alto. O raios riscavam o céu com fúria, seguidos pelo rimbombar dos trovões, enquanto o barco era guiado pela corrente e pelo vento.

“QUE DEUS ABENÇOE ESTE INDIGENTE!” — Gritou o da direita, seguido por gargalhadas guturais do companheiro pescador.

“ESSE ENERGÚMENO, QUE CARA MASSA!” — E continuou a gargalhar.

“DA PRÓXIMA PELO MENOS APAREÇA ACORDADO!” — Riu o da direita.

“E COM UMA GARRAFA DE CACHAÇA!” — Cobrou o da esquerda.

“VIVA NOSSO AMIGO!”

“VIVA!”

Completamente inebriados e distraídos pela euforia, o pequeno barco foi levado até uma área inavegável sem que tivessem percebido, onde arrecifes pontiagudos sinalizavam perigo. Num solavanco violento, o casco colidiu contra as formações rochosas fazendo o conteúdo do barco ser lançado pela inércia. Os dois pescadores conseguiram se segurar na balaustrada da popa, enquanto o pobre homem, antes apenas um bêbado desempregado e agora um corpo desamparado, foi arremessado ao vento e engolido pelas águas do mar, morrendo assim pela terceira e última vez.

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