Da aniquilação de mim mesma

Thaíla
Revista Mormaço
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3 min readAug 11, 2022
Foto: Thaíla Campos — São João, 2021

Começou com noites mal dormidas. Um barulho qualquer na rua que me acorda no meio da madrugada e já perdi o que restava de sonho. Melhor levantar e começar a me arrumar pro trabalho. Com o tempo a cabeça pesava cada vez mais quando deitava no travesseiro, cheio de pedras metafóricas. Às vezes ficava parada tanto tempo na mesma posição esperando o sono chegar que o formigamento fazia cócegas desagradáveis, me dava a sensação de aranhas inquietas subindo pelas minhas pernas.

Não conseguia descansar nem na minha cama, nem na cama alheia. Todas as noites — e alguns dias — tentava todas as posições, as confortáveis e as desconfortáveis. Em um mês tenho certeza que não dormi mais do que deveria em uma semana. Diferentes noites, diferentes camas, diferentes companhias, ou companhia nenhuma.

Falhei em todos os minutos. Passava horas de olho fechado, e no fim de cada hora ainda estava apenas de olho fechado. Levanto. Televisão, cama, banheiro, cozinha, chão, e começa tudo de novo. Os remédios deram errado, mas por três noites e dois dias, me lambuzei em um sono trincado e indiferente.

Sem sonho e sem descanso.

As outras drogas me serviram menos ainda. Com elas tenho a sensação de que o tempo segue se arrastando mais lentamente, sem prestar muita atenção na minha urgência, e passa sem pressa nenhuma. Usei as drogas por menos tempo do que os remédios. Tudo me deixa insatisfeita de um jeito cansativo.

Um dia, a certeza: se saísse não conseguiria mais voltar. Fui invadida por esse sentimento com tanta força, que me vi morrendo, literalmente de sono, ali mesmo na fila do mercado, ou enquanto esperava o ônibus passar. Foi quando parei de sair. Não falo com mais ninguém a não ser pelo interfone do apartamento:

— é o entregador.

— pode deixar na porta, vou descer.

Às vezes demorava tanto pra reunir forças, que quando descia a comida já não estava mais lá, até parece que ia me esperar por muito tempo.

Se não tivesse engolido todos os meus amigos talvez eles estivessem aqui. Mas meu celular descarregou há uma semana e ainda não consegui achar o carregador. Tá tudo meio confuso. Às vezes acho que deixei no escritório, às vezes lembro que vai fazer dois meses que não vou no escritório. Será que fui demitida?

Hoje me olhei no espelho e percebi que não sabia mais nada de mim. Tanto tempo sem ver os outros, perdi o referencial e não me reconheço mais nos limites da minha própria pele. Aos poucos sinto que estou me perdendo de quem sempre fui. Me perco no espaço da minha casa — agora tão infamiliar.

Perco tanto tempo pensando em como seria se fosse diferente, que não tem me sobrado tempo, nem vontade, de sonhar o presente. Será que é assim que a chama da gente começa a se apagar?

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Thaíla
Revista Mormaço

Baiana de Salvador, psicóloga de formação, psicanalista de desejo e escritora de gaveta.