Da figuração à desfiguração: Paisagens Substantivas, de Anderson Lucarezi — notas de leitura.

Lucas Carneiro
Revista Mormaço
Published in
7 min readDec 15, 2023
(Plaquete Paisagens Substantivas, Ed. Córrego, 2022)

As noções acerca da paisagem e seus sentidos têm sido objeto de discussão em diversas esferas do saber. Este debate tem despertado interesse em campos como a filosofia, geografia, arte e literatura. Segundo o professor, pensador e poeta Michel Collot, nos parágrafos que abrem a introdução de sua obra intitulada Poética e filosofia da paisagem — traduzida para o português em 2013 —, a crescente curiosidade manifestada nos últimos anos em torno das paisagens não surge somente como uma moda ou fenômeno de sociedade. Muito pelo contrário, emerge como um fato que corresponde a uma evolução significativa das mentalidades. Nessa proposição, a paisagem, tal como aduz Collot (2013, p. 16) [1], se apresenta muito mais do que um mero objeto de estudo, uma simples temática capaz de despertar interesses alheios. É, acima de tudo, um procedimento estratégico, no sentido em que sensibiliza e ressignifica de maneira contínua as perspectivas humanas e modos de compreender o mundo ao fornecer “um modelo para pensar a complexidade de uma realidade que convida articular os aportes das diferentes ciências do homem e da sociedade.” (COLLOT, 2013, p. 20), sempre movida pelas grandes transformações.

Nesta perspectiva, quando se especula a respeito da literatura e seus movimentos constituintes, observa-se que as paisagens sempre estiveram presentes como elementos centrais explorados por diversos escritores para a composição de suas obras. Ao nos debruçar sobre os escritos do século XVIII, por exemplo, torna-se evidente que o movimento de representação dos elementos que nos cercam ganha uma intensidade significativa com os românticos ingleses. Estes, guiados pelas noções de individualismo, valorização da natureza, sublime e imaginação, buscavam uma aproximação consolidada entre os homens e as paisagens que o circundavam, dando ênfase, em especial, ao caráter bucólico — traço que conferiu a figuras como William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge e até mesmo ao próprio William Blake (por meio de seus poemas integrados ao seu trabalho Poetical Sketches), a alcunha de The Landscape Poets (BEERS, 1899) [2].

Com as significativas transformações que ascenderam no meio social durante o século XX, a arte e a literatura na modernidade, como bem ilustra Collot (2015, p. 19) [3], tenderam a se desviar da representação do mundo exterior. No tocante às paisagens, constata-se uma crise. Entre os vanguardistas, questiona-se a incapacidade dos discursos artísticos, por meio da linguagem figurativa, do exercício mimético, de reproduzirem fielmente realidade. Um fator intrinsecamente impossível, dado que as paisagens se definem como todos os aspectos, sensações, prazeres e construções passíveis de serem captadas pelos sentidos humanos em sua mais variada abstração, e não apenas um elemento situado em dimensões físicas capazes de ser compreendido unicamente por via da construção visual.

Assim, ao desprender-se das amarras que apontavam para uma representação objetiva das coisas, a arte e a poesia/literatura moderna passam por uma mudança significativa em seu escopo. Impulsionadas pelos complexos subjetivos que ascendem no plano mais íntimo de cada autor, contata-se, nesse processo, uma transição significativa da figuração para a desfiguração. Nessa evolução, a sensação passa a desempenhar um papel fundamental no processo de construção artística ao transpor os limites da mera percepção. Logo, convém explicitar que desfigurar a paisagem vai além de simplesmente observá-la. Envolve, acima de tudo, experimentá-la, tateá-la, sentir e vivenciá-la. Tais experiências se revelam ao considerarmos os poemas que compõe a plaquete “Paisagens Substantivas”, assinada pelo poeta e tradutor paulista Anderson Lucarezi.

(Foto publicada mediante autorização)

Formado em letras pela Universidade de São Paulo, poeta, professor e tradutor de grandes nomes da poesia anglófona como Hart Crane e Elizabeth Bishop, Anderson estreou na literatura com seu livro Réquiem (editora Patuá, 2012), laureado com o Prêmio Nascente (USP). É autor das obras Constelatário (editora Patuá, 2016), Afasia perante a algaravia da era (editora Primata, 2021) e Roleta Russa (edição do autor, 2021). Em 2022 publicou pela editora córrego a plaquete intitulada Paisagens Substantivas, que integra o volume 13 da série Poetas da gangue.

De modo inicial, convém destacar o poder criativo do autor. Já no título, a obra revela um ponto intrigante: a ironia. Paisagens substantivas são, na verdade, paisagens adjetivas: ávida/ abortada/ pandêmica/ expandida/ fugidia etc. Quanto à sua organização, percebe-se que os poemas que compõe o trabalho de Anderson aparentam estabelecer uma conexão harmônica entre si. Dessa forma, o leitor, em compasso com a palavra, acompanha o fluxo que, como acordes numa partitura, deslizam de maneira contínua entre as paisagens, flutuam, vibram pelo tempo-espaço do papiro. No que tange ao eu lírico, um ponto salta à vista: sua semelhança com a figura do flâneur, do passante que, com seu pergaminho em mãos e inscrito na modernidade, caminha pelo subúrbio, pelos boulevards, ruas e vielas sempre com perspectivas bem-informadas às coisas ao seu redor. Assim, a voz que habita em boa parte dos poemas que integram a obra, ao transitar entre os espaços urbanos, experimenta a atmosfera citadina, absorve, descreve as complexidades e nuances do ambiente que o cerca.

Esse aspecto pode ser observado, por exemplo, quando se toma como base o poema que abre a coleção, intitulado: “Paisagem Ávida”. Ambientado no campo da metrópole e com um alto teor imagético, o poema esboça traços que flertam com a vida cotidiana e as tendências contemporâneas — tal qual a tecnologia. A construção dos versos chama atenção: a combinação entre substantivos (predominante) e adjetivos concedem à composição lírica uma fluidez. As imagens evocadas — o viaduto, o grafite sob o pixo, os prédios, as colunas que sustentam o estertor da cidade, o cinza (ou melhor, o gris) — se entrelaçam aos cidadãos: a drag que brada, e aquele que, interdito pelo medo, anseia furar a barreira sanitária imposta durante a quarentena. Por meio de tais dispositivos, a voz lírica ao explorar as nuances da intricada atmosfera urbana constrói um campo de tensão que, consigo, amplia a experiência sensorial do leitor, inscrito de modo direto nessa paleta multifacetada.

Outro aspecto interessante que salta à vista quando se especula acerca dos poemas que compõe “Paisagens Substantivas”, diz respeito a presença da quotidianidade, que se funde no corpo textual da obra por meio de algumas metáforas. Para melhor examinar acerca desse ponto, convém destacar o poema intitulado “Paisagem Pandêmica”. Nessa composição lírica, temos como plano de fundo a crise sanitária gerada pela pandemia da Covid-19. Os versos que abrem o poema carregam consigo uma imagem curiosa que, por sua vez, transmite ao leitor a agonia da reclusão e o desejo em transpor essa barreira imposta como forma de superar o caos gerado por essa realidade sombria: “CALEIDOSCÓPICO, o olho não cabe no espaço entre quatro paredes: motivo da busca pela amplitude interdita.” Nas lines subsequentes, o poder criativo do poeta cria um campo simbólico aberto a múltiplas interpretações, onde a rápida disseminação do vírus/taxa de contágio no país é comparada a velocidade das informações partilhadas por meio dos smartphones: “caça-níquel, a bobina Brasil tem a maior taxa na tela do smartphone de contágio.

Mais adiante, torna-se perceptível que as referências ao período pandêmico ganham corpus de tensão por meio de imagens figurativas, tais quais: o plano funerário, uma referência (in)direta a Bruno Covas, e os jargões proferidos em cadeia nacional ironizando o poder dizimador do vírus: “quando se covas olha o anuncia/ panorama plano funerário, /não se vê a paisagem — e sim — o próprio rosto. / a cena engloba quem a observa/ via dupla, essa, no vão morrer, , lamento […]”. Ainda sob esta mesma lente, chamo atenção para a construção simbólica materializada no último verso, que carrega consigo um sentido de autorreflexão em que a paisagem, dado ao confinamento, é convertida em um espelho, na qual a desconexão entre sujeito e realidade exterior suscita meditações ante a possibilidade do fim por intermédio de um microrganismo patogênico e seu caráter letal.

Logo, o que se conclui mediante a leitura da plaquete “Paisagens Substantivas”, em diálogo com os aspectos discutidos anteriormente, é que a obra não apresenta confinada aos espaços dos exames das paisagens apenas por via da lógica pautada na representação visual. Muito pelo contrário, por meio de um projeto estético inovador, abre caminhos sinuosos ante a tais noções limítrofes. Assim, o poeta, por meio do exercício de desfiguração como ferramenta expressiva, e em uníssono as relações dispostas entre a palavra poética e a realidade cotidiana, convida o leitor a vivenciar, tatear e, sobretudo, refletir, por meio das paisagens que, adjetivas, se sobrepõe e flutuam ininterruptamente como campos vibracionais entre o tempo-espaço do papiro, acerca das intrincadas nuances que permeiam o mundo ao nosso redor.

Notas bibliográficas:

[1] COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Editora: Oficina Raquel, 2013.

[2] BEERS, Henry A. The Landscape Poets. In: A History of English Romanticism in the Eighteen Century. New York: Editora Henry Holt and Company, 1899.

[3] COLLOT, Michel. Poesia, paisagem e sensação. Revista de Letras. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/15974/1/2015_art_mcollottraducao.pdf. Acesso em 20. nov. 2023.

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Lucas Carneiro
Revista Mormaço

Baiano, 23 anos. Graduado em Letras, Língua Inglesa e Literaturas. Escreve e publica nas horas vagas. É colaborador na Revista Mormaço. @lucasncarneiro.