De sonhos abertos

Beatriz Helena
Revista Mormaço
Published in
2 min readMar 1, 2023
A tarefa, pintura de Remédios Varo.

1.

Antes de cortar o pão
Pegar a faca
Sentar-se à mesa
Ocupar a cozinha
Caminhar os dedos pelas paredes do corredor
Saltitar do quarto
Vestir a roupa
Tirar o pijama
Desgrudar da cama
Abrir o outro olho
Abrir um olho
Tudo parecia
Fazer sentido
Tudo aparecia
Dentro do espelho
A boca pintada de
Vermelho vivo como
Morangos ao sol
De rachar os vasos
Chineses no Brasil
Vendendo pastel
Na feira de sábado
De manhã
Quente
Debaixo do lençol
Você podia
Dormir mais cinco minutos.

2.

Acompanhar o mundo do verão
Na era de batimentos
Multidões vociferantes
Manchetes escandalosas.

Por dentro
Tudo desperta o desejo de subir as grades
Virar as mesas
Chutar as cadeiras.
Furtar as cortinas da igreja para emendar na roupa,
Mastigar folha de enciclopédia
Mordiscar a borracha do lápis
Limpar o chão da cozinha com a língua
E abraçar o cachorro
Para dormir de conchinha
Numa praia distante,
Onde der na telha
Com as ondas de azulejo,
Longe dos gritos humanos,
Só o chiado das ilusões.

Por fora, o corpo castigado de suor
Estatelado
No chão geladinho.

3.

Nem tudo é bonito e forte
bonito e grande,
grandioso.

na graça de um instante
um sentimento sem nome,
hesitação motivada
num sonho.

ver um inseto em fuga
numa flor bonita
e um bicho feio atrás.

quem diria o bicho feio vindo.
meia volta!
e a gente fugindo junto
pelo cabo da flor,
desviando espinhos
num trabalho de formiga.
no caminho único até as pétalas
à essência.
trago um detalhe para o fundo verde:
seguro a sua mão
correndo,
enquanto a minha outra está vazia
pendente, solta,
um abandono.
te daria a outra mão também
mas tento, tento
e o sonho não deixa.

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