Descaminhos da crítica literária hoje — apontamentos pessoais.

Lucas Carneiro
Revista Mormaço
Published in
16 min readFeb 1, 2024

I

Há algumas semanas estive conversando com um colega sobre certos aspectos da crítica literária hoje que tem me intrigado bastante. Confesso que, sem realizar generalizações, decerto, o que venho percebendo nesse exercício é um abandono de suas propriedades centrais e, por conseguinte, sua substituição por algo que, na minha perspectiva, se configura como uma espécie de pseudo-crítica. Com efeito, antes de adentrar em tais discussões, convém estabelecer que as reflexões aqui dispostas se configuram como meros apontamentos de cunho pessoal. Logo, a perspectiva que se delineia com as observações que serão realizadas nos parágrafos subsequentes é que este estudo seja aprofundado, moldando, por assim dizer, uma reflexão mais robusta.

II

Ao refletir a respeito das questões da crítica literária no cenário contemporâneo, é imperativo examinar, em primeiro plano, sobre o estado do seu objeto maior: a literatura. Para mergulhar nesse horizonte, convém lançar mãos das ideias desenvolvidas por Ivete Lara Camargos Walty. No terceiro capítulo de sua obra intitulada O que é Ficção (1985) [2], Walty revisita um ponto interessante. A autora argumenta que, na atual esfera social, nota-se um certo prestígio atribuído pelos sujeitos às questões de ordem científicas e históricas, que materializam em seu cerne o discurso factual. No tocante aos discursos artísticos e ficcionais, que, em contrapartida, se inserem no campo das possibilidades, no limiar entre o real e o imaginário, observa-se que estes se apresentam confinados a um espaço circunscrito na sociedade.

Segundo Walty (1985, p. 29–30), essa dinâmica perceptível hoje está fundamentada em uma dicotomia estruturada em dois seguimentos: as coisas consideradas “sérias” — associada sempre ao trabalho, à técnica e ao capital — e as coisas não “sérias”, atribuídas sempre ao deleite. Enquadrada nesta segunda categoria subjugada a uma noção de não valor, a literatura tem sido relegada.

As razões centrais para esta ocorrência consistem nas noções de capital difundidas na esfera social, e podem ser examinadas por três diferentes perspectivas: 1) se o ato de criação não se articula aos princípios de produção, ou seja, não é um produto capaz de gerar capital, logo, seu propósito maior surge como um fator ausente de serventia à sociedade. 2) se não há serventia por detrás do seu propósito, muito menos um fomento ao lucro, não há razões para os sujeitos serem submetidos a tal ato. 3) se ao longo do vasto palco da cena literária os discursos artísticos e ficcionais atravessaram séculos sempre em uníssono à sociedade, de modo a despertar entre os sujeitos, para além do deleite, o senso de criticidade, este objeto carrega em seu âmago uma força capaz de desestabilizar com a ordem e os fundamentos que configuram o tempo presente. Neste sentido, a saída encontrada para evitar essa ocorrência consiste em um único caminho: ofuscá-la cada vez mais.

Assim situado, a literatura em perspectivas contemporâneas tem se tornado um objeto de pura desconfiança. Nos currículos escolares, sua presença, assim como os projetos de estímulo à leitura, tem sido mínima. Com frequência indaga-se: literatura para quê? As bibliotecas se veem cada vez mais destinadas ao vazio. Poucos são os visitantes que, diante da aura frenética do cotidiano, reservam algumas horas do dia para adentrar nesse tecido poderoso e transitar entre as estantes preenchidas pela poeira e morfo a procura de alguma obra. Quanto as livrarias, muitas têm enfrentado de maneira constante a ameaça iminente à falência. E, não raro, são as situações dos sebos, que diariamente encaram o desafio de concorrer com os grandes mercados digitais.

Diante de tais circunstâncias, o que se percebe hoje é que a literatura se apresenta ao público em uma posição de crise, deslocada do pedestal de prestígio que por anos a fio ocupou no cenário universal. Mas e quanto a crítica literária? Qual o lugar que ela ocupa hoje? Para uma compreensão mais aprofundada acerca dessa questão, convém explorar, concisamente, suas raízes iniciais.

III

Traçar uma história da crítica literária, é, por certo, uma jornada extensa. O exercício que, por si, já se apresentava frequente desde tempos imemoriais, fora se desenvolvendo gradativamente com o passar dos anos. A crítica constitui um procedimento fundamental para todo ser humano. Não há pensamento, tomada de decisões, emissões de princípios e outros fatores sem que exista, antes de tudo, o desempenho desta atividade. Se te perguntas as razões pelas quais preferes Y a Z, por exemplo, espera-se que, no cerne desse questionamento, o “porque” da preferência seja devidamente explicitado, de modo a abrir, por assim dizer, um horizonte dialético. Mas afinal, o que é crítica?

No campo da etimologia, a palavra advém do grego kritikḗ, que derivado do verbo krinein, significa o ato de expressar uma análise a respeito de determinado produto. Nas palavras de Junqueira, a crítica pode ser entendida como a “arte ou habilidade de julgar a obra de um autor por meio de um exame racional, indiferente a pre-conceitos, convenções ou dogmas, tendo em vista algum juízo de valor.” (Junqueira, 2010, p. 126) [2]. Esse, de fato, é um exercício que se apresenta intrínseco a diversas esferas do saber. Caminha desde a poética, a retórica, a filosofia, teoria literária, teologia, sociologia, entre tantas outras. No entanto, mesmo com sua amplitude, ela não se confina exclusivamente a uma área, pois esta é uma atividade que constitui a humanidade desde as suas raízes primordiais.

No curso da antiguidade, lugar onde tudo se inicia, o exercício crítico caminhava em uníssono à atividade filosófica. Na Grécia Clássica, pensadores como Platão e Aristóteles, por exemplo, se dedicaram ao exame minucioso da arte e da poesia, bem como ao desenvolvimento de conceitos-chave que, mais tarde, seriam fundamentais aos estudos literários — tais quais o de mimésis e catársis. Aristóteles, em particular, foi responsável por sistematizar em sua Magnum opus intitulada Da Arte Poética (Peri Poietikēs), os elementos intrínsecos à tragédia grega, abordando pontos tais quais enredo, personagem, linguagem, entre outros, que, mais tarde, tornaram-se elementos fundamentais para o exame da narrativa dramática e suas nuances.

Na Idade Média, conforme evidenciado por Junqueira (2010, p. 27), a crítica manifestou-se predominantemente no contexto da escolástica. Dessa forma, para além da compreensão de obras religiosas, clássicas e filosóficas, buscava-se, com esse exercício, um enfoque nas simbologias intrínsecas ao texto, que, por si, eram fundamentais para a revelação das suas camadas de sentido. Neste sentido, a exegese nesse momento histórico se apresentava direcionada para uma abordagem centrada na alegoria, princípio que orientava o sujeito na exploração e busca pela lição moral presente nas escrituras e demais obras passíveis de exame crítico.

Com a chegada da era moderna, em vista das evoluções que ascenderam no meio social, a crítica foi alvo de uma transformação significativa. A primeira delas, e talvez uma das mais importantes, surge entre os séculos XVII e XVIII, que presenciou o crescimento considerável do número de pessoas alfabetizadas na Europa. Este aspecto foi fundamental para que a crítica literária se deslocasse de um campo dito ‘exclusivo’ aos eruditos e intelectuais da época, e expandisse seus horizontes para as mais distintas camadas sociais. Paralelo a tal ponto, a humanidade testemunhou o surgimento e a ascensão dos periódicos e revistas, que desempenharam uma função basilar na circulação da literatura e da crítica por todo o território.

Ao promover o estímulo à leitura e o debate arguto a respeito das formas literárias vigentes até então, estas publicações proporcionaram a abertura de um espaço para que leitores pudessem expressar suas considerações acerca das obras lançadas naquele período. Nesse cenário, surge então a crítica literária jornalística, uma modalidade que cultiva um estilo de escrita diversificado ao abranger ao seu escopo artigos de opinião, resenhas e ensaios, e que, por si, contribuiu de maneira basilar para o desenvolvimento cultural e diálogos em torno da literatura na esfera social.

No curso do século XIX, a crítica se consolida como uma atividade científica, e traz consigo novas perspectivas e abordagens para o exame minucioso do texto e outros fenômenos. No âmbito literário, destacam-se as concepções advindas de correntes de pensamentos tais quais: I) o formalismo russo, com sua ênfase no close-reading; II) o estruturalismo, centrando-se na perspectiva das unidades intrínsecas ao texto; III) e pós-estruturalismo, caracterizado pelos debates em torno da desconstrução. Nesse contexto, emerge a crítica literária acadêmica, cujo fundamento central se dedica ao exame e compreensão do texto literário por meio de métodos rigorosos pautados em um elevado grau de aprofundamento.

Este breve percurso histórico dos caminhos percorridos pela crítica evidência algumas perspectivas centrais e abordagens que delinearam essa prática vital ao longo do tempo. No entanto, ao adentrar no cenário contemporâneo, eis que nos deparamos com um terreno marcado por grandes questionamentos e desafios. Ora, se considerarmos que a crítica literária possui como objeto maior a própria literatura, e esta, por sua vez, enfrenta um dilema intrínseco a si de crise, não raro, com efeito, seria errôneo afirmar que, de maneira correlatada, a crítica literária em perspectivas atuais também assume uma posição de igual. A equação que, por si, sustenta essa constatação, pode ser compreendida pela seguinte ótica: 1) se o elemento que me define se apresenta em um dilema de perda de prestígio; 2) e minha vitalidade está intrinsecamente conectada a este objeto; 3) logo, de maneira inevitável, eu também enfrento esse mesmo dilema.

Assim, tanto a literatura quanto a crítica literária se apresentam confinadas a um espaço circunscrito na sociedade contemporânea. Mesmo com os avanços tecnológicos que, de certo modo, contribuíram para tornar os diálogos e reflexões em torno da literatura ainda mais acessíveis, o que se presencia hoje, decerto, sem realizar generalizações, é o abandono de algumas propriedades centrais que constituem o exercício em contraposição a algo que, na minha visão, se configura como uma espécie de pseudo-crítica. Para tanto, convém estabelecer que, por este termo, entende-se um conjunto de comportamentos, discursos e atos que, ao desviar dos propósitos do exercício, pouco agregam para uma reflexão aguda e um debate sólido em torno do objeto literário. Gostaria de delineá-los com maior precisão na seção a seguir.

IV

Os constantes desafios e questionamentos que permeiam a crítica literária e a literatura no contexto atual nos levam a examinar acerca de algumas deturpações que tem atravessam o exercício e resultam, de certo modo, em uma deformação da sua essência. Essa descaracterização se revela na medida em que há um certo distanciamento para com as propriedades ditas ‘originais’ que constituem esse ofício, as quais se fundamentam, sobretudo, no respeito, diálogo e foco central no objeto. As sombras proporcionadas por tais desvios constituem a pseudo-crítica, e culminam em um processo contínuo de descaminho. Em outras palavras, para além de presenciar no cerne dessa atividade uma evolução, observam-se alguns atrasos decorrentes da manutenção de certos atos não construtivos e fragilidades que surgem no processo.

Gostaria dedestacar, inicialmente, a emergência nichos onde o vínculo pessoal entre crítico e autor é mais importante do que uma análise da obra pelo crivo da impessoalidade. A explicação para este fenômeno pode ser compreendida por meio de uma simples reflexão: imagine que eu desempenhe o papel de crítico e, no meu hall de amigos e conhecidos, eu tenha uma pessoa dedicada à escrita de prosa. Após um certo período imerso em seus trabalhos, essa pessoa decide reunir seus esboços e publicar um romance. Recebo a notícia da publicação e, em seguida, encaminho-me à livraria para poder adquirir a obra. Em casa, realizo uma leitura atenta do material, e constato, em alguns capítulos, a presença de algumas fragilidades: transições um pouco abruptas, pontos que deveriam ser mais intensificados, passagens que poderiam ter sido construídas com mais aprofundamento, de modo a explorar as necessidades psicológicas dos/das personagens, etc. Após a leitura, me disponho a preparar uma crítica. No entanto, a partir do momento em que me encontro concentrado, com o lápis e o papel em mãos, recordo que a pessoa por trás do livro é, acima de tudo, meu amigo de infância. Neste sentido, em vista dessa circunstância, sinto-me inclinado a fazer uma crítica positiva do material, deixando de lado as fragilidades observadas durante o meu processo (subjetivo e crítico) de leitura, em respeito ao vínculo que possuo com o autor. Diante desse exercício, a pergunta que fica é: qual a contribuição oferecida para a compreensão e reflexão acerca da obra em questão? Se os elementos detectados por meio da leitura cuidadosa do material fossem devidamente expressos, preservando o princípio ético do argumento construtivo, não representaria um avanço significativo na abertura de um horizonte reflexivo? Não abriria um leque dialético medido pelo debate em torno do texto?

Como forma de resposta para tais questionamentos, convém mencionar uma experiência singular na história da literatura estadunidense envolvendo a editora chefe da Poetry Magazine, Harriet Monroe, e o jovem poeta de Reading Wallace Stevens — cujos primeiros escritos assinados na revista vinham sob o pseudônimo de Peter Parasol. Em 1915, assumindo uma identidade própria, mas ainda desconhecido, Stevens submeteu ao periódico um poema intitulado Sunday Morning, que teve uma recepção positiva por parte dos editores. No processo de parecer crítico da produção, Harriet, com sua leitura atenta, expressou para Stevens o seguinte: “Wallace, seu poema é fabuloso! Eu realmente gostei! A única coisa que gostaria de ponderar é a seguinte: percebe essas três estrofes? Elas não estão bem estruturadas. Teremos que retirá-las.” [3] O poeta, concordando com a leitura cuidadosa feita pela editora chefe e crítica, respondeu o seguinte: “Você é a especialista, tudo certo.” Nesse exemplo dado, percebe-se que a fragilidade constatada por Harriet no poema foi devidamente apresentada ao jovem Wallace, mantendo, acima de tudo, um tom respeitoso e com foco total na obra em questão. Neste sentido, mesmo havendo uma intervenção direta da crítica na obra do autor, dado a retirada das estrofes mencionadas, isso foi brevemente comunicado a Stevens como forma de sugestão, que, considerando o argumento delineado por Harriet, optou por concordar. Com o exercício em questão, nota-se que a reflexão devidamente realizada desembocou em um campo formidável medido pelo diálogo em torno do objeto. Eis aqui a verdadeira essência da crítica.

O segundo aspecto que desejo considerar, trata-se de certos comentários preconceituosos que se apresentam intrínsecos ao argumento da pessoa que se dispõe a realizar uma crítica sobre determinada obra. A fim de ilustrar esse ponto, evoco aqui uma experiência recente que testemunhei. Por razões éticas, é claro, não mencionarei nomes. Concentrarei apenas na análise da ocasião e no desenvolvimento do caso.

Com as constantes evoluções tecnológicas que ascendem cotidianamente, a internet tornou-se um espaço amplo que presenciou nos últimos anos o surgimento de blogs, sites, canais e páginas cujo conteúdo central está voltado para a literatura. Não raro, também, são os professores, leitores e críticos que se dispõe dessas ferramentas como forma de tornar o conhecimento e as experiências de leitura um produto cada vez mais acessível. Quando se trata de literatura, ou, mais especificamente, de preferências literárias, o caráter subjetivo torna-se um fator evidente. No contexto geral, as qualidades das obras literárias jamais devem ser medidas de maneira objetiva, pois este é um fator que varia conforme a visão de mundo e experiências de cada indivíduo.

Dito isso, certo dia, acompanhando um desses perfis de literatura no Instagram, me deparei com uma dinâmica interessante feita com base na ferramenta chamada “caixa de perguntas”. Ao observar os questionamentos realizados e respondidos ao longo dos Stories, um deles me chamou atenção. A indagação foi formulada da seguinte maneira: “Professor, gostaria de saber o seguinte: qual a sua visão crítica a respeito das obras de Carolina Maria de Jesus?”. A resposta dada, por sua vez, casou-me impacto, principalmente pelo fato de a pessoa por trás da tela ocupar a posição de crítico e escritor com um número de obras já publicadas e discutidas. Eis sua transcrição: “Esse é o tipo de obra que a gente considera como subliteratura, uma verdadeira literatura de segunda. Quanto à autora, digo que só fez sucesso pela cor da pele.” Dadas as circunstâncias, questiono: em um espaço, mesmo que virtual e informal, visto como um campo passível de diálogos e reflexões críticas acerca da literatura, o que se acrescenta com esse tipo de argumento? Em outras palavras, assim como a obra de Carolina Maria de Jesus foi descrita na perspectiva de uma subliteratura, digo que essa modalidade de crítica realizada por esse sujeito se enquadra em uma espécie de pseudo-crítica, ou, mais precisamente, em uma crítica de segunda. Isso porque a manutenção de tais discursos, de fato, não agrega em nada para um debate abrangente sobre a obra em questão, apenas promove desvios em direção a outros planos distantes da verdadeira essência que deveria ser considerada no exercício crítico.

O terceiro ponto que gostaria de examinar, diz respeito aos demais concursos e prêmios literários. Em sua grande maioria, tais movimentos são constituídos por um grupo de pessoas especialistas no campo que, mediante a atividade crítica, são responsáveis por avaliar as obras candidatas à premiação em seus distintos segmentos. No entanto, o que se presencia com frequência ao final dessas iniciativas é um problema que, na medida que o tempo avança, torna a persistir.

A questão em pauta é a seguinte: sabe-se que todas as obras que compõe a lista de candidatos passa por uma leitura atenta e cuidadosa por parte dos jurados. No entanto, penso que seja impossível, por exemplo, examinar um romance, uma coleção de contos ou um volume de poesias sem que haja, antes de tudo, a consideração de alguns critérios. Não digo, muito menos sugiro, que isso seja algo pré-estabelecido. Porém, dado a subjetividade do processo, ou, mais ainda, a perspectiva teórica-crítica defendida pela pessoa que se defronta com a obra — pensando aqui mais precisamente na teoria literária — nota-se que há um trajeto a ser percorrido. Há pontos a serem observados por uma análise minuciosa, há passagens a serem examinadas cuidadosamente, construções, cenário, versos, imagens, metáforas, temas, etc. Em suma, há uma culminância de fatores intrínsecos à obra literária que, quando analisados, são considerados em suas mais variadas distintas óticas.

No entanto, quando dado por encerrado o processo, atribuído uma nota e, mais precisamente, divulgada a lista final dos premiados e suas respectivas colocações, nota-se a ausência de algo: a justificativa do avaliador, do analista, do jurado para a escolha daquela obra. Em curtas palavras, a própria crítica do texto em questão.

Neste sentido, eis que pergunto: como um determinado leitor terá acesso a uma obra sugerida por alguém, sem, antes de tudo, se defrontar com algum comentário a seu respeito? Não digo que se trata de uma concessão direta de spoiler, quiçá uma reprodução fiel do texto alvo disposto em uma resenha. Mas sim um comentário, um argumento, uma visão que sirva como porta de entrada para aquele universo. Penso que, enquanto em que esse exercício seja praticado de maneira regular, principalmente com o leitor tendo acesso direto ao material e sendo um participante ativo nesse ciclo dialético de diálogos, novos impulsos serão gerados.

O quarto e último aspecto que gostaria de examinar, está vinculado à crítica literária universitária. Ultimamente, em diálogo com alguns amigos da área, tenho percebido que, mesmo com o sentimento de crise que paira sobre a literatura em tempos cada vez mais draconianos, a crítica universitária tem se apresentado cada vez mais firme, e caminha a cada dia para uma crescente significativa. No entanto, ao adentrar nesse terreno constituído por uma imagem de progresso, eis que reside um problema. Isso porque, na mesma medida em que a crítica universitária avança em passos largos, ela tem se restringido cada vez mais aos contextos acadêmicos. Deste modo, os debates e reflexões em torno da literatura, ao invés de tornar-se um fator aberto para todas as camadas sociais, acaba por confinar-se aos muros das grandes Universidades.

Não raro, com efeito, é o caso das revistas acadêmicas, que, de modo constante, recebem um elevado número de publicações para os seus números — seja em formato de dossiê, temática livre, específica ou fluxo contínuo. Mas, com frequência, se deparam com um dilema pautado no baixo índice de leitores. Imerso nessa freneticidade que vigora no meio universitário, o sujeito escreve, produz e publica. Contudo, esse trabalho gerado, de maneira constante, carece de leituras regulares, e, sobretudo, citações por parte dos próprios pesquisadores que compõe a área. Há, nesse processo, uma lógica fundada na ideia de produzir por produzir, sem que se atinja, de fato, um objetivo a não ser a manutenção do currículo — visto que o material gerado dificilmente torna-se uma fonte de reflexão mais robusta no sentido mais amplo.

Dito isso, expresso uma concordância para com a visão proposta por Nakagome (2017, p. 229) [4], quando afirma que esse tipo de crítica parece atender apenas aos interesses específicos da esfera acadêmica, justamente pelo simples fato de estar cada vez mais confinada a um espaço que, por natureza, não promove a transfusão do conhecimento gerado para a esfera social.

Ademais, para além de tais pontos, é imperativo examinar acerca de outro aspecto que encapsula as nuances do que aqui denomino por pseudo-crítica — uma abordagem que, por si, não atende aos padrões desejados de análise, pautados em uma perspectiva construtiva, precisa e bem informada. Trata-se, nesse caso, da sobreposição do fenômeno (recorte analítico do tema) em contraposição ao próprio objeto, ou seja, a própria literatura. Transcrevo, abaixo, uma experiência que testemunhei no início da graduação.

No meu segundo semestre do curso de Letras, Língua Inglesa e Literaturas, recordo-me de estar redigindo, como requisito para um dos componentes, um ensaio crítico tendo como recorte analítico a representação do ceticismo na dicção poética de Wallace Stevens. Durante o processo de escrita, de modo indireto, acabei por conceder um maior direcionamento para as nuances do tema, esquecendo, por assim dizer, de promover um aprofundamento crítico nas questões propriamente literárias.

Em diálogo com o professor do componente, percebi que o ecletismo que caracteriza a área literária hoje traz contribuições incontestáveis, permitindo, inclusive, transcender as noções estritas do texto em si. No entanto, é crucial, em primeiro plano, jamais perder de vista que a literatura tem um início e um fim em si. Ou seja, possui como ponto de partida o discurso literário, percorre as demais áreas e temáticas e culmina no próprio discurso literário. Dessa forma, a partir do momento em que a crítica direciona seu foco exclusivamente para o tema, qual o espaço que resta para as reflexões em torno do objeto em questão?

V

Sob o lume dos aspectos por ora discutidos ao longo dessa empreitada, deparamo-nos com uma encruzilhada diante da crise que acomete a literatura e, sobretudo, a crítica literária. O caminho é extenso, porém, tortuoso, e traz consigo uma questão: como superar tais impasses? A resposta é simples, porém, revela-se apenas quando desvendados os mistérios do porvir. No entanto, sigamos cada vez mais persistindo em debater e refletir acerca do estado dessa arte. Quem sabe, assim, o diálogo franco e aberto seja uma porta de entrada para transformações futuras.

Notas bibliográficas:

[1] WALTY, Ivete Lara Camargo. O que é ficção? São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

[2] JUNQUEIRA, Leandro Gama. Origem e permanência da crítica. Arte & Ensaios, v. 21, n. 21, p. 124–139, 2010.

[3] AMERICA, Library of. Story of the week: Sunday Morning, Wallace Stevens (1879–1955). Library of America. Disponível em: Story of the Week: Sunday Morning (loa.org). Acesso em: 08. jan. 2024.

[4] NAKAGOME, P. T. Algumas questões (muito pessoais) sobre a crítica literária hoje. Teresa, [S. l.], n. 18, p. 227–239, 2018. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/127476. Acesso em: 8 jan. 2024.

*a Revista Mormaço é uma publicação independente, coletiva e voluntária da Mormaço Editorial. você pode nos apoiar dando palminhas nos textos e compartilhando-os. nos encontre nas redes sociais com o Mormaço Editorial

--

--

Lucas Carneiro
Revista Mormaço

Baiano, 23 anos. Graduado em Letras, Língua Inglesa e Literaturas. Escreve e publica nas horas vagas. É colaborador na Revista Mormaço. @lucasncarneiro.