rêverie

Ana Carolina
Revista Mormaço
Published in
3 min readJul 15, 2022
(fotógrafo desconhecido; montagem da autora)

Bateu a porta sem força ou pressa. Tirou os saltos, largou a bolsa no sofá. O som é de chaves, de pastas prestes a cair e de gente chegando em casa.

Ali, no canto da sala, no escuro das 19:36, está o piano.

O piano todo dia a encara de braços cruzados. Sério. Imóvel. Um móvel que se personifica na ausência dele e deixa de ser o piano, é ele, ali, na sua frente. Sério, como sempre foi. Ela tem certeza de que ele é o homem mais sério que já conheceu em toda a vida, ela também nunca foi uma mulher de graças exageradas, sorrisos e brincadeiras fora de hora.

De braços cruzados o piano, em pé, no canto da sala.
De penas cruzadas ela, no sofá, com um copo d’água na mão.

Ficaram ali, segundos, horas, anos inteiros, abraçados pelo silêncio e pelo que restou da companhia um do outro. O gato raramente dava as caras, ficava enroscado em algum canto da varanda, indiferente ao diálogo mudo entre os donos da casa.

Num passado distante, quando ela chegava em casa, a luz da sala estava acesa e o piano se comunicava com ela. As vezes era Mozart, Chopin (seu favorito), Debussy, Nelson Freire… sempre alguma coisa, sempre alguma nota, sempre um som ativo, e não esse silêncio omisso desbravador do (seu) vazio.

Está acostumada com aquilo: com aquele piano. Com ele. A ausência do seu corpo é caótica e lhe causa raiva. O desconforto de viver também sem o piano ela têm medo de sequer cogitar. Entrar em casa e: (ainda mais) vazio. Sem aquele outro corpo no canto da sala, só o espaço desocupado, vago, livre… Livre? Não.

E se ele tivesse morrido?

O pensamento não trouxe culpa.

E se a morte tivesse separado os dois, como juraram na igreja? “Até que a morte nos separe”. Pensou na morte dele. Se permitiu chorar com a ideia porque se prometeram perante ao padre e a Deus, haveria de ter morte. Houve morte. E esse luto pós luta? Quem é o morto? A morte é de quê? Da tolerância? Da paciência? Da vontade? Da versão dos dois que não existe mais? Do “nós” pelo avesso que se arrastava com cada vez mais dificuldade e dor pelo chão do apartamento? Morte do amor, então?

(amor morre?)

Sentou no banquinho do piano, esse lugar estranho que nunca foi seu e sentiu as teclas frias sob os dedos. Encarou as mãos. Pensou “preciso fazer as unhas”. Pensou também “preciso que ele venha buscar o piano” mas o novo apartamento dele não tem espaço para um piano de cauda (graças a Deus).

Depois que as roupas saíram no closet, o carro da vaga da garagem, os chás de nome estranho deixaram a dispensa, o computador deixou o escritório e o cheiro dele esqueceu os travesseiros do quarto e a rede na varanda, a presença ficou preservada naquele móvel preto, grande, espaçoso e impossível de desconsiderar. Ali, bem no canto da sala.

Tocou “” com o dedão. Doeu quando o som calou o silêncio. O gato levantou o pescoço, assustado.

Tocou “” com o indicador. Lembrou da vez que ouviu o piano cantar Liebestraum, de Liszt. Liebestraum significa “sonhos de amor”. Naquele dia ela estava sentada na poltrona da varanda bebendo suco de maracujá e beliscando uma fatia de bolo de cenoura. Sorriu e pensou: “será que o resto da minha vida vai ser assim?”

Exatamente essa palavra: resto.

Acordou. Passou rápido pelo “mi” (com médio) e pelo “” (com anelar, agora sem o anel). Pelo nimo e pela fantasia. Não quis se demorar ali.

Parou. Hoje, com os dedos sob aquelas teclas que não são suas, suspira e pensa: “será que o fim da minha vida vai ser assim?”

Exatamente essa palavra: fim.

Toca “sol” com o mindinho
Se da conta de que tem dias que é só isso.
outros dias foram: só isso?
novos dias, ela só
é isso.
E só. Acabou.

que ainda faltam 2 notas: “” e “Si”, que esperam com paciência e ansiedade para sentir a diferença na pressão ao ser tocada por ela e não por ele.

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