deve haver motivo para isso tudo

Beatriz Helena
Revista Mormaço
Published in
3 min readJul 3, 2023
Madame X (Madame Pierre Gautreau) — John Singer Sargent — 1883–84–208.6 x 109.9 cm

Quando viu a cortina desfiada balançando suaves ondulações, lembrou-se dos cabelos da avó, mirrados e quase brancos ao vento da praia. A avó era grande, ombros largos, fala grossa. Viu o mar uma única vez.

Debaixo do nariz da avó, todos tinham que comer o prato inteiro. Nenhum grão era admissível na lata do lixo, dizia que conhecia a fome, e que sua fome tinha sido de farinha simples, sequer de farofa complexa. A farinha inchava, avolumando o estômago e aquela madeira da janela também inchava com a umidade sob as cortinas que a escondiam cada vez menos.

Aqui e ali, aquela casa perdia o sentido. Era chão sem terra, chão de flutuar. À medida em que saía-se de casa cedo e chegava-se tarde, tudo esvaziava. A rotina esvaziava a vida. O sentido de estar ali era pouco e o desejo de não estar ali era sem sentido.

Os dias passavam, passavam… Vinha um impulso de amar a sala, amar as plantas. E como a avó amava as plantas.

Eliza tinha três décadas, cinco plantas e um par de botas. Como amava e odiava as botas. Eram lindas, mas um adereço para dias feios. Às vezes, queria usá-las em dias bonitos, mas o mundo não compreenderia. E perdia-se ânimo nas incompreensões. A avó jamais entenderia aquela casa ou o porquê de Eliza ter unhas tão imensas a ponto de precisar de ajuda para pegar o seu cartão de crédito no chão…

Agora, as cortinas perdiam o sentido porque, tão esfarrapadas, revelavam toda a luz do horizonte e como a luz era reveladora. Eliza ia e vinha da cozinha para a sala, procurando entender alguma coisa. Qualquer coisa.

A falta da avó era incurável e sem nome. Eliza ainda a escutava fechando ruidosamente as malas e as gavetas, todos os detalhes da pressa. “Escolhe uma boneca, não podem ser duas.”.

Chegou à cozinha aos galopes, voltou à sala arrastando pés. A sombra do vaso era assimétrica. Pôs-se a mover o vaso para consertar sua sombra. Não adiantou, precisaria mover o sol. Inquieta, sentou-se, encostada na mesa. O chão limpo. Naquela casa, ninguém pisou para sujar o chão.

Ainda sentia sob os pés os grãos de arroz e de milho. Também era capaz de escutar o próprio coração acelerado pela última gritaria de que fora palco. A voz do avô sobressaindo. Virou-se para o lado e viu uma pitada de areia perto do pé da mesa de centro. Nada do que é feio merece ser enfeitado, a avó dizia. O feio é feio e pronto.

Eliza varreu os grãos e correu para o quarto. Arrumou ruidosamente uma mochila para fugir do seu dia de folga. Suas botas sujaram o corredor.

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