dez fevereiros atrás

danna dantas
Revista Mormaço
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3 min readFeb 6, 2021
a casa dos treze aos dezesseis, essa semana.

só percebi que o tempo passou quando notei que meu pai começou a contar histórias repetidas como os velhinhos conversadores gostam de fazer
faz dez anos que houve um fevereiro em que saí e nunca mais voltei pro lugar onde cresci e tudo seguiu como se eu nunca tivesse estado lá.

os lugares sempre seguem em frente.

minha irmã voltou
e me contou que tudo está exatamente igual, só que dez anos mais velho.

me deu muito medo de ser assim.

também contou que a cidade inteira tem a tinta descascando de cima a baixo e que a senhorinha que a gente chamava de bruxa deve ser bruxa mesmo porque depois de tanto tempo ela ainda não morreu.
nas fotos que recebi, entendi que a casa onde morávamos na infância é muito maior na minha memória do que é na realidade. as janelas altas — que eu precisava pisar no sofá pra alcançar — estão pouco acima do meu umbigo, posicionadas de um jeito meio ridículo.

é pela mágica do mundo que é possível que as coisas sejam grandes e pequenas ao mesmo tempo.

lembro muito daquela casa e fiquei horas pensando porra irmã não acredito que a lua parou de seguir o carro do papai depois que a gente cresceu, aquele gol prata era mesmo especial
não merecia ter sido vendido como sucata depois de um acidente, foi um encanto interrompido cedo demais.

meu pai disse que até hoje não sabe o tamanho do que a gente merece.
hoje ele não pode mais dirigir.

essa semana recebi uma foto da outra casa, a casa dos treze aos dezesseis, onde os anos pareciam menos mau humorados.
encarei a foto e me senti distante, como se eu estivesse dez anos mais velha também.
só por curiosidade gostaria de saber quem mora lá agora e se ainda deixam crescer o capim-santo no quintal
sequer lembro o nome da rua, mas por um instante fui capaz de voltar a morar nela pra reencontrar todos de quem não me despedi naquele fevereiro que eu não percebi ser o último.

fevereiro costumava fazer as coisas parecerem melhores, do mesmo jeito que a minha memória faz

é por ele que tento fazer com que meus dedos escrevam algo que console a mim mesma do sentimento de que viver é mais difícil do que consigo resolver e me lembre que as cidades que me aumentaram eram pequenas mas tinham nome de fé e de água brava, pura encantaria.
queria perguntar às senhorinhas que ainda acreditam em mágica se é errado acender uma vela pedindo pra não ter que ser forte.
quero viver até encontrar duas garotinhas que acreditem que eu sou bruxa também.

de histórias repetidas eu sempre gostei.

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danna dantas
Revista Mormaço

nascer no interior me levou a escrever sobre os lados de dentro