Dia de bêbado

Rafaela Maria
Revista Mormaço
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4 min readJun 13, 2022
foto: Rafaela Maria

Vovô disse que domingo é dia de bêbado, que não era pra ficar na rua, que não era pra dar ouvidos. Falou que a estrada que cortava a cidade no meio tinha virado carrinho bate-bate pra filho de fazendeiro. Mas, vovô, se lá na cidade tem o parque de diversão, por que eles gostam de brincar aqui?

As luzes do parque eram tão lindas. A cidade toda iluminada, com cheiro de melado, mijo e ferrugem. Mas era tão iluminada que não tinha nem como existir o homem do saco por lá. Aqui não. Aqui tinha o homem do saco e ele morava na terceira casa. Todos os dias saía com saco enrolado no punho e só voltava no dia dos bêbados com uma cachaça vazia nas mãos.

Quando isso acontecia, eu me escondia nas manilhas. Eram muitas, muitas, muitas manilhas de concreto que tinham. Ficava lá sentadinha esperando o homem do saco fechar a porta da terceira casa. Vovô me disse que o homem do saco só voltava domingo porque também era dia de missa e que quando o sol fica laranjinha é a hora de se arrepender dos pecados da semana e começar uma reza braba.

Domingo era dia de muita gente e de muita coisa. Só não era dia de criança ficar na rua e sim nas manilhas, porque até dentro de casa tinha bêbado e mulher arrependida. Tinha soco, tinha gritaria, tinha chifre. Só não tinha comida. Nas manilhas era mais sossegado. Lá tinha como ouvir a música do bar e ver as formigas brincarem de roda gigante.

Foi no sábado que seu Jonas estava nas manilhas me esperando. Seu Jonas era limpinho, não andava com saco na mão e nem brincava de bate-bate. Seu Jonas nem saía de casa nos domingos. Seu Jonas gostava mesmo era de tomar sorvete e brincar com as crianças. Mas dessa vez seu Jonas estava sozinho nas manilhas e me disse que tinha ido lá pra brincar comigo.

— Esses meninos são todos uns chatos!

Eram mesmo. Só queriam brincar de bater bola, matar passarinho e levantar as saias das meninas. Eu não gostava dos meninos, nem seu Jonas. Ele me disse que me viu brincando nas manilhas, por isso estava lá me esperando, queria brincar também e tinha até trazido bolo de chocolate.

— Você quer?

Eu quero, seu Jonas, eu quero. E sentamos na manilha pra comer aquele bolo de chocolate que hmmmm seu jonas, esse bolo parece estar tão gostoso! Seu Jonas, então, tirou de um saquinho branco de padaria aquele bolo e entregou nas minhas mãos aquele tablete enorme de chocolate, de melado, de granulado, de cheiro de padaria e feliz aniversário. Hmmm seu jonas, esse bolo está tão bom! Não quer um pedaço?

Vovô nunca tinha me dito que dia era o dia de sábado. Vovô, advinha, eu descobri! Dia de sábado é dia de bolo de chocolate nas manilhas. Vov…ô.

Todos os sábados seu Jonas me dava um doce da padaria enquanto sentávamos dentro das manilhas. Ele penteava meus cabelos com as unhas, levava colônia cor de rosa e ficávamos lá… comendo…. brincando…. todas as vezes que ele abria o saco branco saía de lá um doce lindo, igual aos da televisão. Mas seu Jonas disse que não tinha dinheiro suficiente pra comprar para todas as crianças da cidade, por isso eu tinha que ficar

— quietinha.

E esse foi o primeiro segredo que escondi do meu vovô, das outras crianças e de todo o resto. Sábado foi dia de bolo de chocolate até o dia em que Seu Jonas disse que eu precisaria pagar pelos doces. Pagar com o que, Seu Jonas? Eu não tenho dinheiro, não trabalho. Sou só uma criança, Seu Jonas.

— Você deu uma engordadinha depois que começou comer melhor. Olha só, cadê os ossos?

Tão aqui, Seu Jonas, tão aqui. Mas não quero mostrar. Deixa que eu pago com algumas moedas que guardei do troco do pão. Também tenho uma boneca, um vestido branco e uma presilha linda. Seu Jonas, isso tudo paga, seu Jonas?

— Eu só quero brincar.

Seu Jonas, eu não conheço essa brincadeira. Pique esconde? Seu Jonas, então eu tenho que contar até 10 de olhos fechados para que você se esconda.

um.dois.três

— você não é tão criancinha assim, olha só que bonitinhos

quatro.cinco.seis

— você ta contando muito rápido, me deixa olhar melhor

sete.oito.nove

— que coisa mais linda você é

DEZ.

Seu Jonas, eu não quero mais brincar, seu Jon…

— o sol nem ficou laranjinha ainda

Vovô, sábado é dia de brincar de pique esconde com o homem do saco de padaria. Domingo é dia dos bêbados. E antes do carrinho de bate bate acabar, também quis brincar com os filhos de fazendeiro. Vovô, como que vocês pagaram os bolos de chocolate que eu comia nas festas de aniversário? Vovô, me diz que você também não precisou contar até dez. Vovô, o cheiro de pneu queimado no asfalto é igual ao do parque de diversões. Aquele… sim… aquele que era uma minhoca gigante que girava…girava…girava.

Agora eu girava, sim, vovô, para dentro de um saco sem doces. Domingo, vovô, é dia dos bêbados, sim, vovô, e de se arrepender dos pecados e visitar Deus.

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Rafaela Maria
Revista Mormaço

Estudante de Letras pela Universidade de Brasília, designer gráfica, fotógrafa e escritora de contos, poesia e críticas literárias. ig: @rafaelamria