enredo

Hortência Siebra
Revista Mormaço
Published in
4 min readFeb 1, 2024
Jari Hytönen

Era uma voz pavorosa dizendo que eu fosse a Nínive, mas eu odiava Nínive. Tudo era terrivelmente distante, as pessoas amontoadas se esbarrando nas ruas, os camelos desgovernados atravessando os caminhos. Resolvi ir para Társis, tão distante quanto, mas na direção contrária. No caminho, e chegando a Társis, a voz continuava. Vinha não sei de onde, mas me seguia aonde quer que eu fosse. Corri até o porto e procurei um navio que saísse o mais breve. Achei um grego e, mesmo detestando os gregos, parti a bordo.

Mal a viagem começou, eu já estava ponderando se o fundo do mar era menos hostil do que um ambiente lotado de gregos. Sempre pedantes, passavam o tempo todo falando com soberba aquela língua enrolada em “pós” e “kés”, clamando presunçosos à multidão desordenada de seus deuses. Sem falar que levavam qualquer conversa trivial a cair em filosofias, cálculos. Além dessa proximidade com os gregos, a voz e a repetição de Nínive não paravam de me atormentar. Consegui fugir na quarta hora, fui até o porão e me encolhi num vão escuro entre um tonel de azeite e um de vinho. Fiquei quieto até pegar no sono. Dormi. Acordei com o capitão chutando minhas pernas e falando de uma tempestade impetuosa e da fúria de um deus.

Se dependessem só dos gregos, iriam demorar muito a achar um deus raivoso específico que pudesse assumir a autoria dos ataques náuticos. Por sorte, ou contrário a isso, o palito menor foi o meu, o hebreu de um deus só. Em consenso, decidiram atirar meu corpo ao mar, para que pessoalmente, ou em dupla com meu deus, eu acalmasse o bravio das águas. E foi só eles me atirarem que a tempestade cessou.

Fui descendo e orando até esbarrar numa criatura gigantesca que me engoliu, por descuido, junto com um cardume de anchovas e alguns crustáceos pequenos. Escapei do retalho dos dentes e dos traumas da mastigação, mas quase me sufoco tentando atravessar a garganta, muito estreita e desproporcional ao tamanho daquele bicho. E continuei descendo até chegar a uma cavidade, preenchida não mais que o meio com pedaços de peixes e crustáceos, envoltos numa espuma pegajosa. Tentei ficar próximo às paredes, que faziam movimentos em cadência, e aos poucos fui conseguindo me firmar. E, mesmo dentro do bicho, a voz me perseguia.

Foram cinco ou seis horas de reza e tormento até o animal parar, e, depois de dois espasmos, fui expelido num jorro gosmento sobre a areia da praia, onde um comboio estava prestes a partir para Nínive. Depois da tormenta no mar, e da salvação, entreguei-me a cumprir a sentença daquela voz, que continuava a me perseguir, agora um tanto mais satisfeita.

Cheguei a Nínive numa manhã de sábado e era preciso mais três dias para percorrer a cidade por inteiro. Saí batendo de porta em porta até cumprir a maldita missão. Fui anunciando os planos terríveis que o um-só-deus havia traçado para romper a iniquidade daquele povo. De boca em boca, o futuro foi ganhando traços ainda mais devastadores. Assustados, os ninivitas passaram a empreender jejuns e penitências e a optar por ações boas e justas. E, vendo tudo isso, o deus-solitário desistiu do plano de descontinuar aquele povo, o que me deixou numa situação bastante delicada: emissário de um futuro que não veio. A voz pavorosa, por fim, se calou.

Daí então, nada do que eu dissesse era confiável e, cansado da chacota pública, armei uma tenda fora dos muros da cidade. Ao lado dela, o deus-só fez nascer uma mamoneira. Primeiro, fiquei feliz com a sombra, depois me deleitei imaginando o futuro que traria essa companhia. Cobicei um pedaço de torta feita com seus frutos, ambicionei a fluidez das engrenagens que o óleo de rícino poderia me proporcionar, sonhei com combustíveis capazes de mover o que ainda era só desejo. No final do dia, deitei esperançoso.

Quando acordei, fora da cabana, a mamoneira estava seca e havia apenas sol e silêncio. O deus-que-só-pregava-peças destruiu mais um futuro que eu havia previsto. Furioso, tudo o que eu mais queria era ser apenas um grego. Eles, sim, tinham uma multidão de deuses, desordenados, talvez, mas sempre disponíveis a tomar para si a fúria ou o capricho de quem a eles rogasse, sem precisar usar vozes pavorosas nem tempestades no mar muito menos humilhações em Nínive.

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Hortência Siebra
Revista Mormaço

Autora do À Margem do Impossível (2021), do No sexto dia (2022) e dO inverno à tarde (2023)