Escafandro

João Mendes
Revista Mormaço
Published in
4 min readJun 4, 2024
Bernd 📷 Dittrich

Cássia não se mexe, não se mexe, não respira. Ela tá dura, nos meus braços ela tá fria, tá segurando aquela coisa, os dedos duros naquela coisa, ela não tira. Cássia não se mexe! Chego em casa e grito, eu grito, mas eles demoram, por que tão demorando tanto? Ouço lá dentro eles rindo, fazendo festa, mas não se mexem, grito de novo, mais alto, a garganta arranha, aí eles ouvem e se mexem.

Eles estão vindo e Cássia tá dura, balanço o corpo dela e ela não reage, os dedos seguram a coisa na cabeça, pai chega primeiro, mãe vem depois, eles gritam o que é isso, o que aconteceu, mas eu choro e eles não choram e pegam Cássia e levam ela para dentro e eu vou junto.

Tô fedendo a Cássia morta, ela tá morta? Não, ela tá dura, tá fingindo de morta ficando dura, cala a boca, bato a cabeça, a gente tem que deixar Cássia mole de novo.

Foi ela que achou a coisa, ela que colocou a coisa na cabeça e morreu, foi ela, eu só coloquei um pouquinho, mas tirei logo depois. Eu não tô duro, ela que ficou dura. A mãe de Cássia dá um grito feio, me sacode pelos ombros, o que você fez, o que é isso? Tento explicar que foi Cássia que achou o negócio, foi ela, ela que foi pra catar concha e voltou de lá com um esqueleto. Perto da carcaça do barco grande. Esqueleto é gente sem carne. Ela voltou com o esqueleto nos braços, tocando gente morta, eu falei larga isso e ela não largou, foi ela.

O esqueleto tá de capacete, ela disse e deu risada e jogou o esqueleto no chão pra me assustar, eu falei não é capacete, é escafandro, ela disse é capacete de mergulhador, eu disse esqueleto não mergulha, a gente deu risada. O esqueleto tava cheio de sargaço, fedendo a sal, eu tapei o nariz e ela não tapou e disse que o cheiro era bom, mas não era.

A cabeça tá mais velha que o corpo, Cássia falou, olha parece que ainda tem carne no esqueleto, mas na cabeça não tem nada, a cabeça é mais velha que o corpo, como que pode uma coisa dessa?

Eu disse que não sei, que cabeça nasce com corpo, não separado. Ela tirou a coisa do esqueleto, quebrou o pescoço, eu vi, fez crec! E quebrou, o esqueleto tava gritando sem barulho, a bocona arreganhada. Aí ela ficou com o capacete na mão, fechou a portinha de vidro assim e falou aposto que você tem medo de botar na cara, aí eu falei eu não tenho medo, aí ela disse você tem medo sim e deu risada.

Agora ela não tá rindo, ela tá dura, mas ela deu risada, eu vi ela deu. Aí peguei e botei na cabeça, com a portinha fechada ela disse, aí fechei a portinha e ficou tudo escuro e fedendo quente, mas aí eu não tirei pra ela não dar risada. Olhei pro chão, tinha mato no chão, verdinho, aí eu olhei e pisquei os olhos porque tava ardendo os olhos. Aí o chão ficou diferente, o chão tirou a cor, ficou velho, marrom, foi sim, ficou marrom. Depois olhei uma florzinha, pisquei de novo e a flor ficou grande e aí pisquei de novo e a flor ficou morta, dura. Aí eu ri e olhei pro céu e pisquei era dia e pisquei era noite, aí eu ri de novo e Cássia não gostou, ela disse para de ficar rindo e eu não disse nada, aí ela pegou o capacete e botou nela.

Aí Cássia piscou e riu, olhou a folha, olhou o céu e depois olhou a casa grande e não parou de olhar para casa, disse a casa ficou velha, disse meu deus, alguém morreu, quem morreu? E eu ouvi ela piscando forte, piscando um monte assim tlec tlec tlec, disse que painho morreu, mainha mãe morreu, vó morreu, tia morreu, o cachorro morreu sozinho, o telhado caiu, a casa foi embora. Aí eu falei é minha vez e ela fugiu de mim, piscando, disse preciso saber mais perainda e eu fui atrás dela. Tentei tirar o negócio dela, mas ela segurou o negócio, espera! Aí falou com voz chorando, sem voz de Cássia, com voz de velha ne corpo de criança. Segurou o capacete, escafandro, foi, segurou apertado e gritou feio e caiu no chão.

Meu pai tá segurando as pernas e minha tia segura a cabeça escafandro capacete e cada um puxa Cássia, os dedos fazem crec, eu vou correndo pra longe, longe de Cássia dura. Pai grita, tia grita, mãe grita, que coisa horrorosa, não quero ver, não quero. Cássia dura, virou defunto, metade carne metade osso, não quero, cabeça velha berrando num corpo novo.

*a Revista Mormaço é uma publicação independente, coletiva e voluntária da Mormaço Editorial. você pode nos apoiar dando palminhas nos textos e compartilhando-os. nos encontre nas redes sociais com o @mormacoeditorial.

--

--