Escamaria

Mormaço Editorial
Revista Mormaço
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5 min readFeb 1, 2024
Jorge Marchovich

Quando penso no seu rosto, a senhora ainda sorri com aquela mesma cara de quem me esconde uma piada sussurrada por Deus. De pé na curva da cozinha, me aproximo do seu corpo quase sem calor e encontro ali o rosto de uma morte quieta. Junto à sua imagem, espalha-se a rangedura dum bicho destrinchando algo, revirando tudo como um cão vagabundo. Vejo uma sombra cavando sua carne ainda morna até encontrar a resistência de uma ossada meio encardida. A senhora está morta e os peixes ainda fedem.

A morte havia começado muito antes da senhora terminar na forma dura de um cadáver. Lembro de tudo. A senhora deixou a vida quando Miguelzinho foi naufragado pela correnteza e aqueles dois meninos, pálidos e estabacados, apareceram no batente de nossa janela e disseram, sem nenhum cuidado:

“Tia! Tia! O rio puxou Miguel pro fundo!”

Nem deu tempo de levantar do chão e a senhora já veio lá de dentro, com o pó do café agarrado nos dedos, o desespero nos olhos e a boca já meio mole. Pediu que eu trancasse a casa com voz de choro e saiu em disparada atrás dos meninos. Horas depois, quando voltou do rio, já não era minha vó. Voltou só a carne, mas a alma deixou no rio, fazendo companhia ao meu irmão desencarnado.

Deitava todos os dias, minha vó, vendo a senhora chorar baixinho e indo e voltando na boca da noite e chegando em casa só para dormir e sofrer. Vi tudo aquilo sem me levantar da cama. A sombra que tinha a forma da senhora voltava cheirando a peixe. Seu andar lento salgava os cômodos e até o vento da noite se encardia um pouco.

Eu nunca disse, assim de botar palavra para fora, mas sabia que Miguelzinho era parte grande da senhora, um pedaço de carne que a vida só te deu depois de velha. Miguelzinho era suas tardes sem pressa, seu sorriso de menino, o mundo que minha bisa nunca te deixou tocar, num era?

Quando Miguelzinho nadava no lago, a senhora meio que nadava junto, mesmo sem estar lá. Foi mainha que me contou que a senhora implorava a Deus para nascer menino na próxima vida. Só que Mainha disse também que a senhora não queria ser menino de verdade, queria apenas a tranquilidade de viver sem surra, sem puxões no cabelo seco e bordoadas no pé da orelha.

Foi por isso que a senhora trouxe o Miguelzinho de volta, não foi?

No dia que a casa acordou fedendo a peixe, com o chão inteiro desenhado com pegadas. As poças d’água forradas de moscas, as criaturas voando baixo, se enfileirando nas carcaças de peixe. Mas nada importava, porque a senhora estava no quarto, penteando os cabelos barrentos de uma sombra que eu não pude ver. Só ouvia o pente ralhando e a senhora fazendo força com o punho. Me escorei para ver, mas o que estava entre os seus braços era pequeno e se escondia com facilidade.

Com aquele mesmo olhar caído, a senhora serviu a mesa da janta horas depois. As poças haviam secado sem que ninguém as limpasse e o cheiro ainda perambulava pela nossa casa. A senhora apagou as luzes, acendeu uma vela na mesa e pôs ali três pratos de vidro. Depois veio trazendo de dentro aquele menino. Puxava-o pelo braço e ele andava sem resistência. Quando pôs o menino na cadeira, até a luz da vela fugiu dele, como se entendesse que o lugar de uma coisa daquela não pertencia ao mundo que podíamos ver com clareza.

Ainda assim, a senhora sorriu. Pôs a comida sobre a mesa e pediu que agradecêssemos a Deus pela chance de estarmos juntos novamente. Me estendeu a mão emagrecida e indicou com a cabeça que eu segurasse os dedos do meu irmão. Demorei a entender o gesto, diferente dele. Primeiro vi as unhas entrando na luz, unhas roxas cobrindo dedos inchados. E tudo que era humano em Miguelzinho, acabou ali. A partir das dobradiças dos dedos, polvilhavam-se as escamas, coladas à pele como uma atadura.

Subi o olhar ao ponto de alcançar os rosto do meu irmão. Não tinha mais aqueles olhos abestalhados de menino. Da cor que um dia o tinha carregado na cara, restavam apenas duas bolotas embaçadas, como uma película de ovo cobrindo as pupilas.

Me olhava duro, arregalado como um animal surpreendido pela hora da morte.

E quando a senhora me pediu para segurar as mãos dele, eu tentei. Juro que tentei, minha vó, mas não consegui. Sei que a senhora não gostou daquilo, porque disse com todas as letras que eu era uma péssima irmã. Depois me trancou no quarto e pediu que eu me desculpasse com Deus, rezasse até botar sangue pela boca.

Rezei alto, mas não deixei de ouvir os gritos que a senhora deu noite à dentro e o quanto implorou para que meu irmão se comportasse como gente. E quando Miguelzinho berrou de volta, a voz retumbou pelos cômodos como um engasgo. Havia desaprendido as palavras e falava na língua de um menino afogado, a única coisa que conseguia ser.

Caí no sono no meio da reza e levei comigo aquele guincho, ecoando na cabeça.

No dia seguinte, encontrei a casa em silêncio, exceto pelo rilhar dos dentes de Miguelzinho contra a senhora. Me aproximei devagar e desviei da vida curta das moscas caídas no chão e fui no seu quarto e encontrei vocês dois. A senhora caída, meu irmão com a cara enfiada no seu bucho, o rosto escamado melado de… Não olhei mais. Preferi ver o seu rosto ao invés do que o menino fazia. E mesmo quando Miguelzinho foi perdendo as forças, parando devagar até não ter vida alguma naquele corpo remendado, não deixei de olhar para senhora. A serenidade nos olhos, me dizendo que deixar o mundo não era uma coisa tão ruim afinal de contas. Mesmo pálida, a senhora sorria. E o meu irmãozinho, aquilo que a senhora considerava sua reencarnação em vida, descansava inerte, longe do rio, longe da solidão, pertinho da senhora.

João Mendes é um escritor formado em cinema, apaixonado por cultura popular e narrativas insólitas. Organizou a antologia Farras Fantásticas, pela editora Corvus, e também é autor de Serra Minguante, noveleta publicada pela revista Mafagafo e vencedora do prêmio Odisseia de Literatura Fantástica. Venceu também o Prêmio Pindorama 2022 com o conto Corpo de Barro. Pode ser encontrado nas redes sociais através do perfil @umjoaomendes.

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