Estranho contínuo
Durante a mudança, tive medo das louças quebrarem. Elas são simples, assim como a mesa de jantar. Ambos presentes de minha mãe, uma senhora pequena e sisuda. Na despedida, me entregou essas coisas como quem diz da importância de uma alimentação digna. Também lhe fazem mulher um belo prato e um lugar à mesa.
Desdobrando os jornais, vejo as louças inteiras. Há muito guardadas, a poeira acumulada nas notícias se agita. Estou sobrevivendo com PF. Todos os dias como numa vasilha de isopor, sentada numa balaustrada, reclamando do tempero ruim. Não consigo tempo para comer na louça. Não me adapto à comida deste lugar. A cada garfada sinto falta de coentro, algumas especiarias e uma mesa cheia.
Observo o espaço. Quatro marcas pretas nas caixas jogadas pela sala me identificam como dona dos objetos. Lembro do chefe com a cabeça cheia de tralhas e sem espaço para guardá-las. Quatro letras. Meu nome. Hoje ele se referiu a mim como “a novata sentada na mesa bamba ao lado do departamento de recursos humanos”. Treze palavras. Sessenta e duas letras.
Os colegas também não parecem lembrar da minha chegada, quando pronunciei o nome registrado em documento. Ninguém sabe de mim, de onde vim, de quem sou filha. Nas ruas sou levada de um lado a outro pela corrente de gente com resmungos, cotoveladas, bater de ombros. Não sou surpreendida por um “lembra de mim? te carreguei no colo quando cê era bebê” ou “cê é filha de dona Mitinha? como cresceu!”, só pelo fato de não saber dançar o ritmo da cidade.
Os livros estão posicionados na estante. O clima é frio. Eles me fazem companhia aos finais de semana. Também por conta do clima, o secador de cabelo havia sido um dos poucos objetos desempacotados antes de hoje. Meus fios são grossos e volumosos, não há como secá-los naturalmente. E gosto do cabelo solto. Emoldura o rosto. Deixa as bochechas quentinhas. Não gosto de olhares fixos. Por isso o secador foi encaixotado novamente e o tempo de uso agora é gasto elaborando “penteados discretos”.
Hoje retornei da primeira viagem à casa depois de meses. As pessoas estavam iguais. Foi bom sentir familiaridade. O meu nome, escapulindo entre os risos, soava da mesma forma. O tempero que me fazia tanta falta parecia um pouco mais forte e ainda era o melhor que conhecia. Me fizeram perguntas esperadas e outras eram novidades… Há quanto tempo. Senti tanta saudade. Como tá sendo lá? Tá gostando? Cê tá diferente. Tá pálida. Você vai pra sombra por causa desse solzinho? Tu tá falando esquisito. Oh Mitinha, agora sua filha fala cantando. Porque seu cabelo tá desse jeito? Cê tá com pressa? Tá andando estranho.
Pego mais alguns itens. Talvez a visita tenha me impulsionado a terminar a mudança. Retiro da caixa uma gamela, um pacote de velas e algumas figuras de barro. Coloco-as na prateleira mais alta, à vista. Próximas aos livros. Abaixo, na altura do rosto, um espelho e, ao lado, uma planta comprada na volta. Num móvel próximo, fotografias. Não lembrava de tê-las trazido.
Passo horas na tentativa de forjar o lar. Libertando fragmentos de passado deste cárcere de papelão. Começo a sentir algo que, poderia dizer, se assemelha a alento. Talvez seja este o parto da minha pertença. Me dirijo à próxima, mas acabaram as caixas...