expulso

Ana Carolina
Revista Mormaço
Published in
4 min readOct 3, 2022
“Melancolia” de Max Nowas

Eu expulsei você de dentro de mim. Te coloquei para fora no ápice de um gozo transcendental; meu corpo perdeu o controle e a minha única função foi sentir o descontrole:

pupilas dilatadas,
espasmos
o puxão que vem de dentro e
você saindo de vez.

Foi uma questão de necessidade. Desacoplei um pedaço meu, te expulsei de mim, mas sua existência me é necessária: trato de te colocar dentro do corpo de sua mãe enquanto ela experimenta a transcendentalidade junto comigo.

Sua mãe te recebe. Enquanto eu preciso desesperadamente que você saia, ela precisa — assim como também precisa de oxigênio dentro dos pulmões — que você entre.

Você entra e lá fica. Uma vida dentro de mim e 9 meses dentro dela.

É dentro de sua mãe que você consegue finalmente ser você. Dentro de mim nunca teve espaço. As condições não lhe eram favoráveis. Lhe faltou vontade para ser. Você cresce dentro dela e te pergunto:

— Você quer sair?

Ela está dormindo, a barriga está enorme, você lá e eu aqui, ajoelhado ao lado da cama. Aproximo meus lábios de onde acredito que esteja a sua orelha e repito:

— Filho, você quer sair daí?

Quer? Eu acho que não iria querer, se fosse você. Na verdade, eu não quis quando fui você. Não quis me desfazer do interior dela. Não quis sentir o mundo na minha própria pele e, se pudesse, ainda o faria por intermédio da dela. Não como parasita, apenas como um. Meu corpo crescendo junto ao dela, os dois unidos, o coração nem o meu nem o dela, mas um outro, um novo: o nosso. Mesma coisa com as mãos, os olhos e os pulmões. As feições se fundindo e acomodando, virando um terceiro indivíduo, nascido da interseção e fusão, nascido pelo pai que expulsa para a mãe acolher, do filho que se torna o interior do corpo da mãe.

— Filho, eu entendo você não querer sair daí — sussurro.

Você vai viver a vida querendo voltar e talvez não se dê conta disso. Vai conhecer pessoas e se projetar para dentro delas, numa tentativa de reviver o conforto de pertencer a um útero. Vai tentar por diversos orifícios, vai tentar ser engolido por bocas mas a sensação inconsciente que só um útero é capaz de trazer, isso jamais volta, meu filho.

— Aproveite.

Vai chegar o momento em que sua mãe vai ter a necessidade de te expulsar de dentro dela também. Eu, puro prazer e ela, pura dor. Eu gritei, ela vai gritar também. Mas enquanto eu queria que aquele momento se estendesse como inércia do tempo, enquanto eu senti liberdade plena, com sua mãe vai ser o contrário. Os segundos se arrastam. Ela vai sentir um cárcere nunca antes testemunhado.

Prisioneira de quem? Do tempo? Do medo? Da dor? De você?

Ela não vai saber se é você que não consegue se soltar ou se existe alguma força dentro dela que te segura e urge um “não”. Vai empurrar como se suas vidas dependessem disso porque realmente dependem: vocês precisam se separar, precisam de uma distância terrena.

Mas será que foi você que, curioso, num rápido lapso de consciência intrauterina declarou sua independência ou foi ela, inconscientemente, reivindicando a própria individualidade?

Por que me separei? Por que me tornei um? Por que estou fora?

— Venha logo.

Não me deixe só aqui. Saia, logo, meu filho.

Continuo ajoelhado ao lado da cama, encarando a barriga da sua mãe, falando com você, quando de repente

ÁguaNosLençóisRioMarEstuárioConfluênciaEncontro.

Sua mãe acorda de sobressalto, me olha e diz amor, a bolsa estourou. Será que foi avisada em sonho? Será que você gritou daí de dentro numa frequência que apenas o ouvido dela é capaz de captar? Filho, você me ouviu? É por causa disso que quer sair?

Levanto do chão, ela da cama. Animados. Aninhados com a ideia da sua chegada. Trocamos de roupa apressados e rimos ao perceber que eu vesti uma blusa dela e ela uma minha, ambos anestesiados pela expectativa da sua chegada. Eu pergunto tudo bem? Ela sim, eu você consegue andar? Ela sim, amor, vamos. Eu tem certeza? Tá sentindo alguma dor? Alguma coisa? Ela amor, só vamos, vamos para o hospital, está tudo bem.

A sacola, arrumada há mais de um mês, está em cima da mesa da sala com as suas primeiras mudas de roupa. Pego a chave do carro, ela liga para seus avós. Estamos na garagem. Coloco a mão sob a protuberância redonda, talvez pela última vez. Nos olhamos nos olhos, sorrimos, lágrimas escorrem e

— Vamos

para que você consiga, finalmente, vir.

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