Gênesis

matheus dos anjos
Revista Mormaço
Published in
3 min readFeb 1, 2023
Foto: Matheus dos Anjos (2023)

Certa vez, me deparei com uma sentença que mais parecia uma profecia. Algo relacionado a existência, essa coisa tão dura. Disseram-me que o mundo acabaria em água. Sem muito esforço, qualquer pessoa pode constatar a ínfima verdade que isso reverbera — visto que pequenez nada tem a ver com medidas e sim com expressão de força. Desde então ela se repete: seja na escrita, dita ou simbolizada, ou seja, sempre me faz acreditar que o fim — sim, fim como substantivo que carrega inapropriadamente um artigo definido tal qual uma verruga nas costas — este fim tem profundidade e todo um jeito fluido de ser. E, por isso mesmo, este fim tem a possibilidade de não ser ponto final. A natureza líquida das coisas nos permite a reformulação dos significantes, como um facão temporário que corta aquilo que nos liga ao significado. Acabar em água é mudar sua configuração para se assemelhar àquilo que lhe contém; ser aquilo que lhe bordeja; poder cambiar; transformar seu formato como habilidade de adaptação instantânea. Talvez ter o mundo acabando em água seja apenas um aforismo para passagem, sendo a morte mero deslocamento, um barco em alto mar. Caronte pode confirmar.

A questão é que, no fundo, a literalidade dessa beleza não parece certa. Pensando no espaço-tempo como duas pontas de uma corda, há aquela que começa e a que termina. Embora possam ser facilmente confundidas, pois tudo aquilo que começa vem de algo que termina, ainda é possível determinar um objeto como exemplo. Nesse caso, a correção é pura semântica e o certo se inscreve no seu inverso.

Se tem alguma coisa de água nessas pontas, ela está no começo. Tudo que tem vida começa em água. A própria terra, no começo, se me for permitido dizer, já foi inteira água. Toda criança é gestada em líquido materno, que nos envolve e nos protege do choque físico, esses tropeços que ensaiam a realidade do mundo de fora. Sem água, o corpo não seria corpo, sendo essa sua maior consistência. Na culinária, muitas comidas não se iniciam no preparo se não houver água envolvida, diretamente ou não. O doce brasileiro mais conhecido, o brigadeiro, é feito de pura redução de líquidos: alquimia palatável pesada essa de, com tão pouco, fazer algo transmutar em outra. O nosso próprio país como o conhecemos hoje, começou no desembarque de navios carregados de má intenção. Ainda no Brasil, mesmo que nossos costumes nos levem a acreditar que o encerramento do ano ocorre na praia, pulando sete ondas teóricas, o fim é pura falácia. Visto que os pés só toquem na água no badalar da meia noite, podemos concordar que se trata de outro dia, dia novo: ano novo que começa no mar.

No entanto, ainda tem uma vírgula que sobra: o povo diz que o ano só começa verdadeiramente em fevereiro, após o carnaval. Por aqui, o popular é religião e, mesmo assim, mais uma vez, o ano não nos foge de começar em água. Fevereiro é o mês da rainha do mar. No segundo dia, abrimos os caminhos com oferendas para a senhora das águas, pedindo que nos traga paz, amor e um tanto de outras coisas mais. Na Mormaço não seria diferente. A nova edição, a primeira do ano, chega nesse começo de fevereiro, nesse começo de ano, após um período de férias com toda a vontade de pisar na areia e deixar o corpo cozinhar no mar por longas horas. Pelo visto, a bênção de Iemanjá já temos.

A Mormaço volta como quem faz a curva de retorno e retorna assim como a onda do mar, que no começo recua secando a beira da praia, puxando pro fundo o que estiver dentro, para depois voltar com tudo em arrebentação. Volta como um movimento que não cessa, se repete invariavelmente. Também como água de cachoeira, que em nada se iguala a uma torneira: não existe contenção. Água é gênese; água é infinita e a palavra também, ela que é a nossa maior oferenda no balaio que sai rasgando o mar. Esperamos que possam aceitar nossas palavras de bom grado.
Sejam bem-vindos ao ano novo da Mormaço.

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