Grampola

Rafaela Maria
Revista Mormaço
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3 min readApr 7, 2022
Foto: Rafaela Maria

Grampola veio ao mundo do tamanho de um punho, mas com o peso de uma jaca. E ela era bem jacazinha mesmo, toda destrambelhada, não podia ver ninguém que já se mijava e tinha um hálito que fedia a resto de comida na pia. Mesmo com tudo isso, eu amei muito Grampola sem nem precisar conhecer a peça. O que sabia era das suas histórias de loucuras, de amor e de fuga; porque o que ela mais gostava era fazer todo mundo correr atrás da miserável naquela vila lamacenta. Grampola, Grampola, onde você se meteu? O teu castelo de chinelo continua nos buracos do quintal e ainda sinto o cheiro daquele mamão que você roubou da mesa.

Queria poder dizer que Grampola era feliz, mas nem disso tive tempo, porque, sempre que a via, ela estava com aquele olhar de quem ainda procura seu lugar. O lugar poderia ser no meu colo, dentro da minha risada, entre as minhas pernas. A felicidade também poderia estar na rua de madrugada, no cio semestral e na vida de mãe estando no lugar de filha. A gota d’água foi ela ir embora sem me conhecer direito, ou por me conhecer demais preferiu se afastar pra ter mais espaço na memória de quem ficou. Grampola era uma doida. E quem não gosta de maluquice no final de expediente?

A complicação dessa história toda é de não compreender o que se diz sem palavra alguma. Mesmo morando dentro do silêncio, o que a Grampola me dizia era insustentável até mesmo para quem se banha nas retinas molhadas. O fato é que aquela pulguenta não me deu nada, nunca, ao mesmo tempo que me deu tudo que eu queria, menos o pouco tempo da sua vida.

Compreendi a grandeza do seu ato quando conheci Luísa Porto, uma menina com sinal de nascença junto ao olho esquerdo e que levou consigo todos os desaparecimentos do mundo. Gritei por Grampola e por Luísa Porto em Chã da Jaqueira toda. É uma vira lata esguia, maluca e com um sinal de nascença preto junto ao olho direito. Grampola, Luísa, Grampola e Luísa Porto, vocês as viram? Eram duas criaturas estrábicas e com um gênio meigo. Luísa não tinha muita personalidade, mas Grampola latia, latia muito, berrava o dia todo.

Certo dia, eu nasci e do meu grito Grampola compreendeu que estava na hora de acompanhar Luísa. Pulou o muro sem dificuldade alguma, caminhou devagar pela lama e deu uma última mijada no anão de jardim do Coronel. Grampola pôde ser ela até o ponto que cheguei no mundo e tornou a sua imagem a memória doce de uma cachorra maluca e feia. Grampola, por mais que seja impossível ter seus 22 anos de idade, ainda grito teu nome e o de Luísa Porto nas cidades em que vou.

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Rafaela Maria
Revista Mormaço

Estudante de Letras pela Universidade de Brasília, designer gráfica, fotógrafa e escritora de contos, poesia e críticas literárias. ig: @rafaelamria