Gruta

“O Eu não é mais senhor em sua própria casa”. (S. Freud, 1917)

Clara Suit
Revista Mormaço
4 min readJun 4, 2024

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Aqueles eram tempos em que dormir não parecia fazer diferença alguma — não existe descanso quando é à noite que vêm os pesadelos.

Os dias começavam e terminavam com uma cumbuca amarela: a mesma que, pela manhã, continha o iogurte com aveia; e pela noite, a sopa de abóbora. Dia sim, dia também. Todos os dias pareciam iguais— todos essencialmente pintados daquele mesmo tom de amarelo blasé.

Um dia depois do outro, um dia de cada vez.

Não há outra maneira de se sobreviver à ansiedade.

É estranhíssimo o sentimento de não pertencer à sua própria cabeça, aos seus próprios pés, ao seu próprio chão. A ansiedade se esgueira, sorrateira, pelos cantos da mente, rasteja pelos nossos ouvidos e, quando não, já tomou conta de cada sulco do seu cérebro.

Não se pensa direito, não se fala direito, não se raciocina bem. Há um véu invisível entre experiência e sujeito; uma cortina inventada entre público e artista; uma distância infinita entre sentimento de mundo e Drummond.

É como estar dentro de uma gruta em si mesmo, perscrutando, pelas nesgas de luz, a vida que corre, ininterrupta, do lado de fora.

E é difícil morar dentro de uma gruta, querendo correr baixo-céu.

Um dia depois do outro, um dia de cada vez.

A ansiedade te presenteia com algo de perspectiva.

É que ir ao inferno atravessado por todas as milhares de possibilidades de futuros, cenários, perspectivas; e ter o privilégio de retornar acaba te fazendo valorizar muito tudo aquilo que se passa, de fato, no presente.

Lembro-me do dia em que as coisas voltaram a parecer minimamente normais de novo.

Primeiro — retornaram as palavras. As que eu tanto sentia falta. Lentamente, elas ressurgiam em pedaços, sílabas, frases e parágrafos, até voltar a ter um quê de deliciosa coesão e construção.

Enquanto tomada pela ansiedade, a minha escrita se tornara simplista, automática — ainda digna, decente, mas sem coração. Pois a escrita talvez seja a melhor forma de se vivenciar o que são as minúcias da alma — e a ansiedade faz com que a alma se torne um lugar insuportável.

Foram as palavras que primeiro voltaram, quase que imbuídas em luz, para os seus lugares de costume e pertença.

Elas me lembravam de tudo aquilo que residia em mim e gritava para sair, para ecoar para fora da gruta de mim mesma.

Para fora de todos os cenários vis e inexistentes que eu não apenas imaginei na minha cabeça, mas vivi cada segundo: participei de cada catástrofe imaginal, sofri e vivi o trauma daquilo que nunca sequer existiu.

[Como é carregar o trauma de si-mesmo?]

As palavras retornaram como quando se acorda, de súbito, após um pesadelo, brigando para sair e procurar abrigo à luz do sol. A ansiedade é vampiresca: suga toda a energia, mas não sobrevive à claridade.

[Claridade? A ampliação da consciência de si mesmo.]

Voltaram as palavras; como uma espécie de rota para fora da gruta. Afinal, é melhor escrever, do que dormir — a escrita ainda é dolorida, cansada, exaustiva; mas o sono é assolado por demônios e enlouquecedor.

Um dia depois do outro, um dia de cada vez.

À medida que voltam as palavras, também volta a possibilidade de sentir — sem que isso desestabilize todo o sistema de uma vez.

Voltar a sentir, verdadeiramente, perante o que se apresenta à nossa frente, é um dos primeiros privilégios que nos é roubado pela [con-]vivência com um transtorno.

Pois — como viver a vida sem sentir? É aí que nasce a gruta.

Quando descobri que [con-]vivia com a ansiedade, uma estranha sensação de alívio tomou conta de mim. Era ansiedade, então, essa angústia apartada do mundo?

Diagnóstico algum é resolução de nada, mas dar nome ao que se vive nos permite acessar uma dimensão que é partilhada — e não mais tão solitária.

Era uma sensação de paz movediça de quem, enfim, nomeia sentimento e tira de si o sofrer isolado. A primeira carência do sofrimento é a do direito de existir.

E, depois, a de poder ser integrado como parte. A ansiedade ainda está lá quando sinto cheiro de café com canela pela manhã, ou quando vejo o azul do mar da cidade. Ela ainda está lá quando tomo banho, sem pressa, com meu sabonete preferido. Ainda dá suas pontadas, suas pontuais notícias de existência, toda vez que sento numa mesa de bar com amigos.

Mas agora — eu estou lá também.

Eu estou presente. Ela faz parte, mas não é o todo — e a gruta que nos continha agora é um lugar que posso acessar, tateando reverencialmente, como meu.

E que não me escapem as palavras para dar conta dessa ânsia onipresente de ser quem se é.

[Um dia depois do outro, um dia de cada vez]]

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Clara Suit
Revista Mormaço

latinoamericana, psicóloga, analista junguiana, feminista e tipo 1 do eneagrama. escrevo sobre coisas que ainda estou elaborando.