Histórias Roubadas, de Décio Torres Cruz — apontamentos críticos de leitura

Lucas Carneiro
Revista Mormaço
Published in
6 min readApr 1, 2024
Histórias Roubadas, Editora Penalux (2022).

Supomos que certo dia, após o fardo da cotidianidade, você e seus amigos decidem sair em direção ao botequim. Ao chegar nesse espaço onde a frenesi dos passantes alimentam a atmosfera boêmia e, logo em seguida, se acomodarem em um canto, vocês decidem compartilhar relatos de suas vidas jamais ditos. Feito um consenso entre os membros, as histórias se desenrolam pelos lábios consumidos pelo álcool e pela fumaça do cigarro. As risadas preenchem o espaço, enquanto as memórias resgatadas suscitam pequenas reflexões. Ao lado da mesa onde vocês estão reunidos, encontra-se um sujeito solitário, que tem como companhia apenas uma garrafa de cerveja e um caderno — este último sujo e desgastado pelo tempo. A imagem, por si, não gera espanto. Afinal, o espírito da solidão jaz de maneira corriqueira nesses ambientes. No entanto, a feição do rapaz deixa uma marca fixa em seu subconsciente e daqueles que ali se encontram. Após algumas horas de prosa, cada qual retoma o seu rumo, e a vida então flui pelo tempo-espaço do ciclo existencial.

Passado alguns meses, você, por livre e espontânea vontade, decide caminhar em direção à barraca de revistas para comprar um jornal. Em casa, ao folhear as páginas destinadas à literatura e crítica literária, defronta-se com a indicação de um livro bem avaliado por uma pesquisadora de uma renomada universidade. Motivado pela sugestão, você adquire o livro. Contudo, durante o processo de leitura, percebe que as histórias que preenchem as páginas daquela obra são, de forma mais precisa e ficcionalizada, aquelas compartilhadas por você e seus amigos no dia em que estiveram no botequim. E, surpreendentemente, percebe que o autor do livro é, nada mais nada menos, o rapaz solitário que repousava de maneira reflexiva ao lado de sua mesa. Dada as circunstâncias, como proceder? Seria este um crime de apropriação? Afinal, o que são as narrativas literárias senão apropriações, ou melhor, diálogos e reinterpretações de obras passadas? Seria o livro do rapaz que repousava ao lado no botequim um compilado de Histórias Roubadas?

No contexto mencionado, talvez não existisse título mais apropriado para o mais novo livro de Décio Torres Cruz do que este. Décio dispensa apresentações. Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), poeta, escritor, tradutor, crítico literário e membro de prestigiadas instituições como a Academia de Letras da Bahia (ALB) e a Academia Contemporânea de Letras de São Paulo (ACLSP), o autor lançou ao final de 2022 o seu mais recente livro de contos intitulado Histórias Roubadas. A obra, publicada pela Editora Penalux, apresenta 22 contos inscritos sobre as mais variadas temáticas e situado em diferentes localidades. Conta também com orelha e sinopse assinados pelo escritor baiano/brasiliense Lima Trindade e pela escritora portuguesa Teolinda Gersão.

Foto publicada mediante autorização do autor.

Neste livro, Décio brinda os leitores com uma narrativa rica e envolvente que, muita das vezes, culmina em finais inusitados, ou, de maneira mais precisa, em uma revelação parcial da história. O projeto estético do autor é interessante, e se apresenta evidenciado ao leitor logo nas páginas iniciais da obra, que mescla nuances da teoria e crítica literária — em especial ao deslocar as noções de originalidade e cópia embasado em figuras proeminentes da literatura universal como, por exemplo, o bardo de Stratford-Upon-Avon. Os contos, por sua vez, são bem estruturados, e nutre de uma linguagem precisa e variada. Em alguns deles, carregados de humor, crítica e profundidade, é perceptível que o estilo empregado pelo autor assemelha-se à modalidade de escrita adotada por outros autores como Ernest Hemingway e Kate Chopin, cujas narrativas enfatizam a economia das palavras e a significação submersa ao texto. Nesse processo, o leitor desempenha um papel ativo na construção de sentidos à obra mediante ao exercício minucioso de análise das entrelinhas que permeiam a história. É o que acontece, por exemplo, ao considerar os contos intitulados: O lamaçal, O mistério dos jogos mentais e Margô e os sonhos postergados.

Além do estilo de escrita, que, por si, mescla uma variedade de gêneros, tais quais a poesia e o monólogo dramaturgo, outro elemento significativo presente na produção de Décio trata-se da construção psicológica das personagens que habitam suas narrativas. No conto Estradas possíveis e a trilha não percorrida, por exemplo, é perceptível a verve filosófica que paira sob o personagem Matias, revelada por meio da catarse gerada após a leitura do poema The road not taken, de Robert Frost. Nessa história, a profundidade dos versos da composição lírica de Frost confere a Matias uma espécie de crise existencial que se desdobra em uma reflexão e discussão sólida em torno do destino, as possibilidades e as escolhas que, de maneira contínua, moldam nossos caminhos ao longo da vida.

“ As contingências são infinitas, assim como os caminhos que percorremos. A dúvida é se as nossas escolhas já vêm predestinadas, como um código genético ou por forças de seres invisíveis que brincam com nosso destino, como as Moiras fiandeiras, ou se realmente podemos exercer o livre arbítrio e modificar caminhos previamente destinados a nós.”

Assim como Estradas possíveis e a trilha não percorrida, há uma inflexão reflexiva que beira uma tensão filosófica em torno da existência e seus sentidos, o conto Sobre ondas e bancos de areia também captura um tom de reflexão. No entanto, esse dispositivo é explorado de maneira distinta, com foco centrado na perspectiva histórica, que se desenrola mediante a uma tensão premonitória. Ambientado na cidade do Rio de Janeiro, o conto tem como protagonistas dois amigos: Carlos e Marcos. Após receber um convite matinal de Carlos para dar um mergulho nas ondas da praia do Leblon, Marcos sente uma sensação estranha manifestar-se em seu plano mais íntimo. Uma espécie de mal-estar paira sob o personagem, no entanto, convencido pelas palavras do amigo, decide ir ao mergulho. Após o desenrolar da aventura aquática, que culmina em um episódio curioso, Marcos assume uma postura reflexiva interessante. Ao retornar para sua residência, enquanto caminha pelas ruas do Rio, ele indaga acerca dos nomes dados aos prédios históricos e avenidas, buscando, por meio da memória, uma compreensão que traduza as razões para tais homenagens.

“Por que será que escolheram as ruas do Leblon para tantas homenagens a presidentes e militares argentinos e uruguaios? Haja Guerra do Paraguai e libertação da América Espanhola! É tanto general que usaram quase todo o alfabeto: General Artigas, Urquiza, Venâncio Flores e San Martín, el libertador argentino.”

Para além das inflexões reflexivas mencionadas que marcam presença em alguns contos, o humor também é visto como um elemento de destaque na obra de Décio. Isso salta à vista quando se considera, por exemplo, os contos Aula de Português e A aluna descolada e tresloucada, que, em tese, se aproximam ao que concerne ao espaço. Em ambos, o dispositivo humorístico, quando mesclado à ironia, captura de maneira direta a atenção do leitor. Esse efeito é amplificado graças a narrativa envolvente construída pelo autor, no qual a descontração proporcionada pela leveza que emerge dos enredos projeta um misto que flutua entre diversão e reflexão.

Em suma, mesmo se tratando de um livro de estreia do autor no gênero, Histórias Roubadas se revela ao público como uma obra rica e com um vasto potencial criativo e estilístico. Décio ao explorar em seus contos os mais variados temas, de modo a navegar por tópicos como o choque cultural, a cultura de massa, a sexualidade e identidade humana, nos brinda com uma prosa envolvente que, por si, suscitam algumas meditações. De fato, suas narrativas habilmente construídas não surgem diante do público como um mero produto voltado apenas ao deleite. Mas sim, um convite direto aos leitores para apertarem os cintos e viajarem pelas mais variadas histórias roubadas.

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Lucas Carneiro
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Baiano, 23 anos. Graduado em Letras, Língua Inglesa e Literaturas. Escreve e publica nas horas vagas. É colaborador na Revista Mormaço. @lucasncarneiro.