historinha de nada

Masso Otembra
Revista Mormaço
Published in
4 min readJun 28, 2022
pintura abstrata na qual os elementos se confundem, mas é possível, se for observada com a atenção, distinguir uma rosa, esquadrias de janela, plantas, ovos, telhados, e formas geométricas.
Lucia Laguna. Jardim n. 54 (2021)

No princípio nem o verbo era. Nem se faça a luz, e a luz não foi feita. Nada ali teve início, a verdade é essa — minto: verdade aqui é nenhuma. Tinha uma cadeira vazia na varanda de uma construção de madeira, como se esperando. Ali era um lugar que existia em riba de uma ribanceira, onde o vento soprava silêncio no meio das folhas de uma árvore. Os galhos dela balançando, dançando no som desse vento, só tu visse. Ninguém visse. O vento frio ali sem piedade segredava uma cantiga assobiando entre as fendas miúdas da construção de madeira que ficava baixo da árvore. Cima do teto dessa construção caíam as folhas, uma e uma desistindo dos galhos conforme o querer de Deus. Uma folha muito própria vinha escorregando pelo telhado, tudo vagaroso com um mais jeito de folha, até cair pelo canto, aí se foi em queda e formosura, girando e zanzando no ar; mas, em antes de ela chegar no solo, o vento arriava impedindo sua queda, e numa rapideza a folha piruetava no vento, deu uma volta no pé da cadeira, depois deu outra no mesmo pé, e a folha nunca antes tão livre quase no meio de um redemoinho, até que bateu no pé do homem. O homem olhou a folha. O homem. Daqui só se pode ver sua sombra, como há de saber se é o homem? Não. É o homem. Nem é o cabelo curto, nem o ombro largo, nem é pela calça nem. Nem pela mão fechada, nem. Nem nada. Só pode ser o homem por causa de ter um jeito passivo de frente do mundo; só o homem olha o horizonte como estrangeiro não entende uma língua; só, só; só. O homem. Não um homem, nem os homens, nem a mulher, nem as mulheres, mas o homem. O homem maiúsculo, que é de ser o pior dos homens. O homem pisa na folha, e vai em até a cadeira, onde se senta, a mesma cadeira onde a folha deu voltas no comando do vento. Gobéria — pensa o homem. Acho que pensa, o homem. Ele ouve. Uma coisa que não pode. O homem sente uma inquietação que ele guarda, porque uma inquietação assim não pode. Por isso, eu sei que é o homem. Porque só o homem tem medo do que não pode. Olha, ele tenta esconder dele mesmo essa coisa acontecendo dentro dele, mas não vai aguentar muito tempo. Não pode, e por isso mesmo, ó lá, eu falei: por isso mesmo, levanta da mesma cadeira, como se saindo do lugar ele fosse sair dele mesmo. Entra na construção que fica debaixo da árvore. Ouve Gobéria. Dentro da construção ele mesmo diluvia o mundo. Sei porque ouço. Um choro que vem no silêncio do vento. Ele não sabe, Gobéria, ele só ouviu de longe, porque ele não podia, então ele tem que refazer tudinho os passos que ele não soube. O homem não sabe se está dentro é de uma igreja, se é de um curral, um velário, se é uma casa. Só não demora e percebe que não é de ser uma casa, só pode ser o contrário de uma casa. Porque casa é onde a gente faz memória. E ali a memória fazia era fugir dele, a memória escapava pela porta, pelas frestas miúdas das madeiras pregadas. A memória virava o corpo de uma pessoa, depois de outra, virava uma cena mas o homem não sabe o que houve. Ele só ouve, Gobéria, nem dorme, ele só ouve. Carregavam um caixão, isto ele achava, mas no repente já desera um caixão e era um andor sem a santa em cima. Faltava Gobéria, para o homem. Porque ele não quis ir, aí ele só ouve mas não sabe o que houve. O homem pouco se aguenta ali dentro e precisa sair, como se saindo dali pudesse sair do próprio homem. O homem sai. Senta na cadeira, com os cotovelos nos joelhos e a costa em curva olha para suas unhas com as mãos abertas, depois percebe que na pele existente no abismo entre um dedo e outro vive a recordação de seu parente girino o mais distante, a recordação dizendo que, no fim das quantas, ele pode nem ser o homem. Não, isso não pode. O homem levanta. Levanta porque ouve. Porque ouve, Gobéria, ele ouve, mas é mesmo, só o homem podia ouvir um negócio assim e não fazer um nada. É que tudo quanto o homem sabe do mundo é dízimo, Gobéria, e dizimação, e outra coisa além disso não pode. O homem está parado e assunta de novo o horizonte. Havia a vida, e no mesmo lugar até havia o homem, e a vida até que o via, mas não a via o homem. O homem está des pés, esperando a hora onde vai bater em sua bota uma nova folha. No princípio, nem o verbo era. E eu sei que muita coisa existe sendo que nem começa, mas estou dizendo é que ali, Gobéria, é o lugar onde o homem está-se condenando a ser pra sempre o homem. Porque ele ouve, Gobéria, ele te ouve porque ele te ouviu daquela vez, naquela hora, mas ele não faz nada. Por isso, por aquilo, por isso — ele é o homem.

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